ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

A Vitória Traída



NOTAS BIOGRÁFICAS SOBRE OS AUTORES

GENERAL JOAQUIM DA LUZ CUNHA

Nascido em Faro, em 4 de Janeiro de 1914, onde frequentou a instrução primária e o curso secundário, o General Joaquim da Luz Cunha é titular de vários cursos nacionais e estrangeiros (todos com altas classificações), designadamente de Engenharia Militar e Civil; de Estado-Maior; de Altos Comandos; da Escola Superior de Guerra, de Paris; Curso Superior Interforças Armadas, na Escola Superior de Guerra, de Paris; e vários estágios: Operações Anfíbias, em Arzew (Argélia); Cooperação Aeroterrestre a Alemanha; Operações aerocombinadas, em Baden-Ooz (Alemanha), etc.

Promovido a General em 1970, quatro anos depois, em 1974, sobe ao posto de General de quatro estrelas.

Das principais colocações e missões destacam-se as seguintes: Ministro do Exército; Professor e Director dos Cursos de Estado Maior no IAEM; Adido Militar, Naval e Aeronáutico no Brasil; Director da Arma de Engenharia; Professor do Curso de Altos Comandos, no IAEM; Comandante da Região Militar de Angola; Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola e Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.

Principais condecorações nacionais e estrangeiras: Medalha de Mérito Militar de 3.ª classe; Comenda da Ordem Militar de Aviz; Medalha de Prata de Serviços Distintos; Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo; Medalhas de 1.ª e 2.ª classe de Mérito Militar, com distintivo branco, de Espanha; Medalha de Prata da Ordem de Mérito Militar Santos-Dumont, do Brasil; Grande Oficial da Ordem de Mérito Militar do Brasil; Grã-Cruz com estrelas e banda da Ordem de Mérito Militar, da República Federal Alemã, e Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul, Brasil.

Em 30 de Abril de 1974 foi passado à Reserva.

GENERAL KAÚLZA DE ARRIAGA

Nascido no Porto — sendo de origem açoreana pelo lado paterno. Kaúlza de Arriaga fez naquela cidade os seus estudos universitários, ingressando depois na Escola de Guerra, hoje Academia Militar, onde se formou em Engenharia. Mais tarde, distinguiu-se nos Cursos de Estado-Maior e de Altos Comandos do Instituto de Altos Estudos Militares onde veio a ser professor de Estratégia. Nesta qualidade, tornou-se especialista de estratégia nuclear e de estratégia da guerra subversiva. Foi Subsecretário e Secretário de Estado da Aeronáutica. Então construiu a Força Aérea e as Tropas Paraquedistas. Foi também Presidente da Junta de Energia Nuclear. Nesta posição, promoveu a realização de estudos exaustivos sobre a Instalação de centrais núcleo-eléctricas em Portugal.

Desempenhou as funções de Comandante das Forças Terrestres de Moçambique e de Comandante-Chefe do respectivo Teatro de Operações. É com base na experiência do exercício destes altos cargos que o General Kaúlza de Arriaga participa na realização deste livro.

Desempenhou diversas missões em Washington, Bruxelas, Paris e Otawa, relacionadas com o Tratado do Atlântico Norte, assim como nos EUA, referentes à reorganização da indústria militar de munições. Representou Portugal nas negociações luso-norte-americanas, relativas ao acordo dos Açores de que foi co-signatário. Visitou oficialmente a França e a Alemanha e ainda Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné, como Secretário de Estado da Aeronáutica. Chefiou Delegações Portuguesas às Conferências Gerais da Agência Internacional de Energia Atómica, às Reuniões do Conselho de Governadores da mesma AIEA e às da Sociedade Europeia de Energia Atómica. Visitou também oficialmente Inglaterra, a Espanha e a África do Sul como Presidente da Junta de Energia Nuclear, assim como os Estados Unidos da América, a título de convidado especial do Governo deste País.

Quando deixou o Alto Comando de Moçambique, as Tropas dirigiram-lhe uma mensagem que termina do seguinte modo: «Talvez por isso — pela maneira de ser Chefe, pelo jeito de entender a alma de que somos alma e o sangue de que somos sangue, possa agora o General Kaúlza de Arriaga contar com um amigo em cada um dos que teve sob o seu Comando. Talvez por isso — mas não só. É que não é impunemente que se é grande, de muito alto.»

Detido no «28 de Setembro», esteve preso durante 16 meses sem culpa formada. Na prisão, houve-se com invulgar dignidade, recusando mesmo a liberdade condicionada. A única explicação para a sua arbitrária e longa prisão é a de que as forças antidemocráticas, que então predominavam, procuravam neutralizar um dos poucos homens capazes de se opor à sovietização de Portugal.

GENERAL JOSÉ MANUEL BETHENCOURT RODRIGUES

Nasceu no Funchal em 5 de Junho de 1918. Fez o curso secundário no Liceu de Pedro Nunes, em Lisboa.

Para admissão no Curso de Infantaria da Escola do Exército que terminou em 1939, como primeiro classificado frequentou os preparatórios militares na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Concluiu o Curso de Estado-Maior com a classificação de Distinto em 1951 e, 17 anos mais tarde, após a frequência do Curso de Altos Comandos, no qual teve a classificação de Muito Apto, é promovido a Brigadeiro. Em 1972 é General.

Principais missões e colocações: Professor e Director dos Cursos de Estado-Maior; Chefe de Estado-Maior do Quartel-General da Região Militar de Angola; Comandante da Zona Militar Leste de Angola e Comandante-Chefe e Governador da Guiné. Foi também Comandante do Regimento de Artilharia 1. Exerceu, ainda, as funções de Adido Militar e Aeronáutico junto da Embaixada de Portugal em Londres e foi Ministro do Exército, de 1968 a 1970. Foi nomeado para o Centro de Comando e Estado-Maior do Exército Americano, no Command and General Staff College Fort Leavenworth, Kansas (1953).

Condecorações: Medalha de Ouro de Valor Militar com palma; Medalha de Ouro de Serviços Distintos com palma e Grã-Cruz da Medalha de Mérito Militar.

Por despacho da Junta de Salvação Nacional, passou à situação de Reserva em 14 de Maio de 1974.

GENERAL SILVINO SILVÉRIO MARQUES

Nasceu na Nazaré, em 23 de Março de 1918. Frequentou o Liceu de Camões, em Lisboa, obteve os preparatórios de Engenharia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Admitido na Escola do Exército, concluiu o curso de Engenharia Militar, classificando-se em primeiro lugar. Ingressou no corpo de Estado-Maior em 1950. Cumpriu missões militares em França, Inglaterra e Itália. Concluiu o Curso de Altos Comandos em 1968 com a classificação de Muito Apto.

Principais missões e colocações: Professor catedrático, de Organização e Táctica de Engenharia, na Escola do Exército; Governador de Cabo Verde de 1958 a 1962; Governador-Geral de Angola de 1962 a 1966; Director Interino da Arma de Engenharia e do Serviço de Fortificação e Obras Militares; 2.º Comandante da Região Militar e Adjunto do Comando-Chefe, em Moçambique; Professor do Instituto Superior Naval de Guerra; Director dos Serviços de Instrução do Exército e Vogal do Conselho Superior Ultramarino.

Após o 25 de Abril foi nomeado Governador-Geral de Angola, tendo sido, historicamente, o último governador português do território.

Condecorações: Medalha de Ouro de Serviços Distintos com palma; Medalha do Mérito Militar de 2.ª classe; Comenda da Ordem Militar de Aviz; Grande Oficialato da Ordem do Império; Medalha de Ouro de Serviços Distintos do Ultramar e Comenda da Ordem do Mérito Militar do Brasil.

Foi passado à situação de Reserva em 1975.

DEDICATÓRIA

  Aos camaradas mortos em África,
  de 1961 a 1974
  ao serviço da Pátria.

RAZÃO DESTE LIVRO

A situação militar enfrentada pelas Forças Armadas Nacionais, nos princípios de 1974, nos Teatros de Operações da Guiné, de Angola, de Moçambique, constitui a mais importante e generalizada justificação do processo designado por «descolonização», da forma desastrosa como foi conduzido e dos resultados trágicos que provocou.

A guerra estaria militarmente perdida, segundo uns. E também política e diplomaticamente, segundo outros. Haveria que evitar, de qualquer maneira, um desonroso desenlace para a sorte das nossas armas.

Esta justificação parte de políticos civis surgidos com o 25 de Abril, e com ele tornados importantes. Políticos que, na sua grande maioria, vieram do estrangeiro, onde se encontravam refugiados apenas por oposição aos regimes do Dr. Salazar e do Dr. Marcelo Caetano, ou também por fuga aos seus deveres militares. Quase todos haviam colaborado com o inimigo ( praticamente sempre com as facções de ideologia marxista: PAIGC, MPLA, FRELIMO), enquanto concidadãos seus combatiam pela defesa do Ultramar e das suas populações. E tinham-se envolvido na preparação do 25 de Abril que, depois, ajudaram a executar e a orientar.

A mesma justificação é também invocada por alguns dos jovens militares implicados na Revolução.

Dos políticos civis se pode dizer que, em geral, na realidade, não conheciam o Ultramar, nem, concretamente, a situação militar que ali se vivia, pois muitos, repete-se, haviam fugido à guerra: eram compelidos, refractários ou desertores.

Dos militares, alguns tinham sido esforçados combatentes. Outros haviam desfrutado posições de relativa comodidade na retaguarda dos Teatros de Operações. De qualquer forma, muitos pertenciam a escalão demasiado baixo para poderem ter da situação da guerra uma visão global correcta. E a quase todos, como se veio a verificar, faltava formação que consentisse analisar e meditar os problemas da sua Pátria, espalhada pelo mundo, por forma a compreendê-la e a interpretar, e perdoar, como lhes competia, pelos muitos acertos, os erros eventualmente cometidos em séculos de História.

Os raros responsáveis militares de alta hierarquia, que também estiveram comprometidos na preparação e execução do 25 de Abril, nunca foram tão peremptórios naquela justificação. Pelo contrário, e embora o envolvimento, quanto a alguns, na Revolução, seus primórdios e desastre ultramarino subsequente, já não ofereça quaisquer dúvidas, depreende-se de afirmações anteriores ao 25 de Abril, e das que logo a seguir produziram, que era numa posição de força, e não de fraqueza, que se propunham oferecer ao inimigo a possibilidade de paz. Houve mesmo quem, sentindo-se ludibriado, considerasse dever libertar-se dos tortuosos caminhos do «processo» e entendesse ser sua grave obrigação acusar de traidores companheiros de véspera. É que, na verdade, a fracassada «descolonização» foi consistindo em submeter populações genuinamente portuguesas a real e poderoso imperialismo e a real e cruel colonialismo, ambos de origem totalmente estranha ao meio. E isto aconteceu (e está sucedendo) à custa de pavorosos e bárbaros morticínios (nalguns casos verdadeiros genocídios), desencadeando um surto de racismo generalizado, destruindo material e psicologicamente, milhões de portugueses de todas as etnias e manchando a honra das Forças Armadas que, salvo raras excepções, foram compelidas a comportamentos indecorosos e sujeitas aos maiores vexames da sua História. Quer dizer, o processo da chamada «descolonização», constituiu (e está constituindo nas suas consequências) repugnante crime contra a Pátria e contra a Humanidade.

Derrubar o regime político instituído, que durava há cerca de cinquenta anos (metade dos quais consumidos com importantes preocupações impostas, como as da Guerra de Espanha, da II Grande Guerra, dos acontecimentos de Goa e da Guerra do Ultramar), foi o objectivo essencial do 25 de Abril. Tratava-se de um regime que considerava do interesse português defender com armas o Ultramar1 e que os revolucionários apodaram de colonialista, obscurantista, opressivo e corrupto. Pretendia-se com a conquista do poder, implantar uma democracia que salvasse e redimisse o país e pusesse fim, por meios políticos, à guerra do Ultramar.

O que então se anunciou não foi a entrega ou abandono das províncias em guerra, como veio, triste e indignamente, a fazer-se, mas a prévia audição das populações e a execução de vontade que fosse expressa, fazendo funcionar o jogo da chamada auto-determinação. Este propósito, rapidamente baptizado de «descolonização»2, exigia que as populações interessadas se pudessem conscientemente preparar, e portanto exigia tempo. Tempo de preparação com que o Programa tinha de contar, o que implicava admitir que se partia de uma situação de força, como se referiu.

Tudo, porém, foi efectivamente conduzido e executado para que a consulta às populações não pudesse ser feita, nem nas províncias onde havia guerra, nem com honestidade nas outras, que foram sendo artificiosamente enredadas no processo ( para esse efeito logo denominado «descolonização») por acção de agentes civis e militares, mal se sabe ainda como, e, na medida em que vai surgindo informação, repugna compreender porquê.3 Aconteceu assim por pressão dos Movimentos em armas, onde os havia (Guiné, Angola e Moçambique)? Ou por pressão das populações onde a paz total era um facto (Cabo Verde, S. Tomé, Timor)? De forma alguma! Isso aconteceu por acção de revolucionários civis e militares que, apoiados e orientados por altos responsáveis, prosseguiram, por vezes na clandestinidade e em acções divergentes de outras oficiais, contactos mantidos com o inimigo desde o tempo de guerra, e assim foram criando o clima de desmoronamento geral que acabou por impor soluções, as quais, segundo agora tudo indica, haviam sido pré-planeadas. O que teria movimentado tal gente? É cedo para o saber. Mas certamente, ou apenas, ideologia (e fanatismo) ou também racismo, ambição e corrupção.4

As graves decisões que impulsionaram sancionaram as mais profundas alterações na estrutura do nosso país e no destino da nossa população foram sendo provocadas e tomadas, ditatorial e revolucionariamente, por «muito poucos», que em geral se conhecem, sem a devida audição de todo o povo português.

Em face dos trágicos resultados surgidos sentiram esses «muito poucos» a imperiosa necessidade de lançar uma razão suficientemente convincente e motivadora que pudesse justificar o inglório, e esse sim histórico, procedimento e as suas correspondentes responsabilidades. Que militares jovens, e civis ignorantes das coisas do Ultramar e da guerra, tivessem acordado na mesma justificação de índole essencialmente militar — «a guerra estava perdida» —, que não sendo honrosa para os primeiros constitui um alibi para os segundos, só pode significar, se não for indubitavelmente verdadeira, a ingenuidade política dos militares, o atrevimento dos civis e a cumplicidade de todos nas mesmas culpas.

Justificar o processo, que os historiadores um dia classificarão devidamente, afirmando que a «guerra estava perdida» parece tentador. Ensaiou-se consolidar tal justificação (como que em demonstração indirecta a posteriori) atribuindo a um «complexo de derrota»5 o comportamento político-militar da acção, para-comunista do chamado gonçalvismo. No entanto, não querendo atribuir simplesmente a conhecidos métodos revolucionários marxistas o que então aconteceu, parece que, embora com âmbito e consequências diferentes, deverá designar-se o real complexo de culpa existente, por «complexo de traição».

A justificação — a guerra estava perdida — pode, porém, não só não corresponder à realidade como, mesmo, encobrir situação diversa e importante no juízo a fazer dos factos, das atitudes, das pessoas.

Trata-se de grave possibilidade cujo esclarecimento tem de começar a ser procurado. É que se vai tentar fazer.

Começaremos por dar uns tópicos da ideologia nacional de que emanou a doutrina que conduziu a guerra, da situação sócio-económica e da posição diplomática do país. Seguir-se-ão apreciações dos peritos militares mais actualizados, e dos mais qualificados, quanto à situação nos Teatros de Operações da Guiné, de Angola e de Moçambique. Tudo se referirá aos primeiros meses de 1974. Finalizaremos com uma síntese e uma ilação.

Gen. Silvino Silvério Marques

SITUAÇÃO GLOBAL EM 1973/1974

I. IDEOLOGIA NACIONAL

Ainda que, no aspecto formal, imperfeitamente definida e sujeita a controversas hesitações no modo de aplicação6(o que, até certo ponto, resultaria do ambiente existente, de profundas perturbações externas e internas) e certamente sofrendo desvios e erros na prática diária, o essencial da ideologia nacional baseava-se nos conceitos de nação multi-racial (e multi-cultural) e de país pluricontinental. Tratava-se de ideias, essas sim originais e exemplares (revolucionárias mesmo, a ponto de escandalizarem muitos) de conteúdo suficientemente profundo, humano e cristão, e, do ponto de vista histórico suficientemente enraizadas para mobilizar, até ao sacrifício, a devoção da generalidade dos portugueses. Assim aconteceu, uma vez mais, de forma praticamente modelar, até ao 25 de Abril, em todos os Teatros de Operações, em todas as províncias e para todas as etnias, durante os anos de guerra.

Através dos tempos, grandes espíritos portugueses7, dos mais diversos quadrantes políticos, ajudaram a formular, expuseram e aplicaram tais conceitos.

Pontos de vista diferentes de alguns intelectuais que inspiraram o pensamento de muitos revolucionários do 25 de Abril constituíram, nuns casos8, erros profundos de visão baseados em preconceitos arianistas e em conhecimentos presumidos, euforicamente, na época, como correctos e definitivos, quando eram apenas pálidas aproximações de uma realidade, ou aberrantes falsidades; noutros9, interpretações discutíveis, e muito discutidas, da História de Portugal, que não teriam certamente a pretensão de impulsionar ou justificar o «auge da Involução», nem de fechar «o circuito de amplitude histórica» iniciado com a Conquista de Ceuta, e muito menos, em termos mais prosaicos e reais, de entregar o Ultramar português aos soviéticos e destruir a Pátria existente para tentar a perigosa aventura de construir uma nova Pátria ou de totalmente a perder!

Tais pontos de vista foram, em geral, expostos em períodos de crise nacional, com Portugal europeu a esvair-se em política, empobrecido, em marasmo económico e com o Ultramar esquecido, politicamente abandonado. A realidade dos factos, em poucas gerações, tornou-os ultrapassados. E os factos, nos últimos tempos, concretizavam-se: por um lado, em grandes províncias ricas, em pleno progresso, localmente bem administradas, com populações etnicamente diferenciadas, convivendo cada vez com mais espontaneidade; por outro, por províncias mais modestas, apoiadas com solidariedade dentro das possibilidades do conjunto, tudo procurando funcionar em sistemas de vasos comunicantes, de forma que ia evoluindo segundo a resultante positiva das controversas hesitações a que inicialmente nos referimos.

Infelizmente assim não o compreenderam os discípulos daqueles intelectuais que tomaram interpretações e críticas históricas, que a realidade ultrapassara, como fundamento de projecto concreto para a construção do futuro. Com esta base ideológica servindo de suporte e a pressão de grandes interesses estrangeiros desabados, uma vez mais, sobre o nosso Ultramar, desencadearam um processo que mal sabem agora como encaminhar. O país que ficou na Europa será já inviável. A população será já excessiva. O Transporte que era praticamente já inexistente, em termos sergianos, por livre e interessando multilateralmente territórios e populações nacionais, globalmente fixadas, ressuscita para o exterior, condicionado, na mão estendida e no oferecimento implorante de mão-de-obra disponível. Ressuscitado o Transporte, perdida realmente a Fixação, nasce a Diáspora abrangendo agora, além dos de aquém, também os de além-mar10 … Tudo concretizado na tragédia dos refugiados ultramarinos e não somente deles. Em cadeia novos projectos despontam no horizonte e com eles a perspectiva, a ameaça, de fazer recuar ainda mais o rumo histórico nacional: em fórmulas ditas actualizadas, há quem preconize, sem receio de desencadear situações incontroláveis, o ressuscitar dos velhos reinos da Península…

Tão valiosos eram os conceitos que referimos, por tal forma dissolviam a ideologia do inimigo que este, durante muitos anos de guerra, os combateu encarniçadamente, procurando, sem êxito, destruí-los. Tratava-se de conceitos que se inscreviam com tanta naturalidade na alma e nos hábitos de todo o nosso povo que. mesmo aplicados com desvios e deficiências na prática de governantes, administradores e cidadãos, já nos últimos anos de guerra o inimigo desistira de nos chamar racistas para nos apelidar «apenas» de imperialistas e colonialistas. Imperialistas, nós os portugueses, tal como os soviéticos, os americanos… Supremo ridículo! Colonialistas, mas não racistas, embora fossem várias as etnias em presença no povo português e, no Ultramar, estivessem demograficamente desequilibradas. Quem sofria o colonialismo? Os africanos? Sem racismo? Como? Os europeus? Porquê?

Tanta importância se dava à verdade, à força, ao poder aglutinante daqueles conceitos que, logo após o 25 de Abril, a primeira grande manipulação feita ao cérebro dos portugueses por civis colaboracionistas e por militares revolucionários, consistiu em procurar destruí-los, difundindo, como ferrete infamante as ideias retomadas do inimigo de colónia, colonialismo, imperialismo, racismo, exploração, guerra injusta… Ao mesmo tempo, e em convergência, denegriram-se os grandes vultos históricos, heróis, artistas, estadistas, missionários, de qualquer forma relacionados com o Ultramar e a obra ali realizada. Tudo isto através de estribilhos, canções, desenhos, histórias que os meios de comunicação propagaram em verdadeira orgia acanalhada, demolidora da alma da nação. Foi assim também que se preparou o ambiente que havia de liquidar psicologicamente os refugiados que acabaram por ser expulsos do Ultramar, e que, senão fossem destruídos, representariam uma ameaça, pela sua capacidade, pela sua coragem, pelo ódio que a tragédia vivida lhes instilara.

Com base na ideologia que assentava naqueles conceitos essenciais, o estudo e a prática da luta foram permitindo construir uma doutrina de guerra subversiva, que acabou por tomar forma e resultar numa das mais completas que então se conheciam. Aos militares que, como professores e alunos, passavam pelos nossos institutos militares, enriquecidos profissionalmente com a experiência das missões desempenhadas nos Teatros de Operações, e a alguns civis que ali iam expor o seu saber e as suas ideias, se deve a formulação de um corpo de princípios, adaptado ao problema português, que representou um instrumento de valor na condução da guerra.

As disponibilidades financeiras do país e a sua situação económica iam consentindo lançar as estruturas necessárias, segundo a doutrina, com razoável prontidão e eficiência, que porém nunca atingiram o grau naturalmente desejado pelos chefes militares, para os quais os mais altos responsáveis civis de então não estavam suficientemente empenhados na solução dos seus problemas operacionais e logísticos. Identicamente, o equipamento ia aparecendo, embora quase sempre atrasado em relação às necessidades das tropas e especialmente às legítimas ambições dos responsáveis militares. Com o prolongamento da guerra, o enquadramento ressentia-se, em qualidade e quantidade, e a própria instrução do pessoal degradava-se. Esta circunstância corrigia-se, em parte, pelo recurso crescente a soluções locais, o que também se traduzia em valorização das províncias.

Eram dificuldades que preocupavam alguns responsáveis militares. Em fins de 1973 um grupo de Generais não deixava de as ter presentes quando pareceu surgir a oportunidade de uma reversão à hierarquia por parte do movimento dos capitães. Pensou-se, então, poder, por acção conjunta, removê-las, sem prejudicar a guerra que, pelo contrário, se desejava incrementar e encurtar, reforçando os meios e manobrando ao nível estratégico, em face da excelente situação de Angola.

De qualquer forma, muitas das dificuldades que se depararam não eram especialmente nossas. O inimigo também as sofria, numa medida que se imaginava, mas que somente o fim da guerra revelaria concretamente: em Moçambique e em Angola ficou-se surpreendido com a pobreza dos efectivos e a qualidade dos combatentes a que o inimigo já estava reduzido. O recurso a reforços de países vizinhos foi logo necessário, e até consentido e facilitado, para a ocupação inicial de Lourenço Marques e de Luanda …

II. PANORAMA ECONÓMICO-SOCIAL

Seria a situação económica e financeira do País, nos princípios de 1974, compatível com a continuação da guerra? Ninguém, cremos, disse ainda que, do ponto de vista económico e financeiro, a guerra estava perdida. Mas merece a pena fazer uma reflexão sobre o assunto.

Era de percepção generalizada que não só nos estávamos aguentando, mas que progredimos em todo o espaço português, durante os anos de guerra. Impulsionar o desenvolvimento constituía, de acordo com a nossa doutrina de guerra, urna das batalhas que procurávamos vencer em todo o país. E isso estava acontecendo: a ideia do «monumento ao terrorista» não representa simplesmente uma ironia. Correspondia ao sentimento do nosso povo de que, com o esforço e o sacrifício necessários à guerra, e apesar dela, todo o país se estava desenvolvendo e a vida da população ia melhorando.

Algumas informações menos correctas têm sido difundidas, a vários níveis, acerca do custo da guerra e do seu peso nas despesas globais de Portugal europeu e das Províncias de então. Consideramos de interesse fazer o ponto deste importante problema. Recorremos para isso a dados compilados em organismos oficiais (Conf. I Quadro). Como, infelizmente, com o 25 de Abril, os arquivos de muitos serviços foram desorganizados, se não destruídos, o que originou terem desaparecido documentos preciosos, não foi sem alguma dificuldade, e sem amáveis cooperações, que se obtiveram os elementos necessários.11

Anos Despesas12 Públicas de Portugal (Europa) Despesas12 Públicas de Guiné, Angola e Moçambique Despesas13 com as F. A. de Portugal (Europa) e todo o Ultramar se não tivesse havido Guerra Despesas14 com as F. A. de Portugal (Europa) e todo o Ultramar Comparticipação da Guiné, Angola e Moçambique nas despesas com as F. A. de Portugal (Europa) e todo o Ultramar Comparticipação de Portugal (Europa) nas despesas com as F. A. de Portugal (Europa) e todo o Ultramar
1961 13 942 7 774 3 558 5 385 517 4 868
1962 15 183 8 522 3 771 6 487 848 5 639
1963 15 852 10 193 3 997 6 757 941 5 816
1964 17 499 9 978 4 237 7 378 1 009 6 369
1965 18 157 11 089 4 491 8 074 1 145 6 929
1966 19 736 11 925 4 760 9 030 1 363 7 667
1967 23 461 13 132 5 046 11 173 1 632 9 541
1968 25 768 13 494 5 348 13 391 1 874 11 517
1969 25 327 17 473 5 669 13 857 2 237 11 620
1970 32 751 19 693 6 009 14 452 2 427 12 025
1971 36 930 23 198 6 369 14 338 2 697 11 641
1972 42 103 26 237 6 751 15 482 2 961 12 521
1973 43 621 25 710 7 156 16 104 3 431 12 673
1974 53 058 34 792 7 585 20 238 3 711 16 527
1975 75 379 39 830 8 040 17 984 1 400 16 584
Soma 458 767 273 040 82 787 180 130 28 193 151 937
I QUADRO
DESPESAS COM AS FORÇAS ARMADAS (milhares de contos)

A soma das despesas com as Forças Armadas no Portugal europeu e no Portugal ultramarino, de 1961 (ano do início da guerra de Angola) a 1975 (ano em que ainda se pagaram despesas militares de qualquer forma ligadas à guerra) atinge, a preços correntes (col. 4), o valor de 180 milhões de contos (12 milhões de contos por ano, em média). Se não tivesse havido guerra, também se teriam feito despesas com as Forças Armadas entre 1961 e 1975. Estas despesas podem ser estimadas a partir do último ano de paz: o ano de 1960. Entre 1961 e 1973 (período de orçamentos e contas, regulares, normais e comparáveis), as despesas públicas, a preços correntes, de todo o país (Europa e Ultramar), cresceram ao ritmo médio anual de 10%. Admitindo que as despesas com as Forças Armadas, no mesmo período e até 1975, cresceriam, se não tivesse havido guerra e o Ultramar se mantivesse, ao ritmo de 6%15 ao ano, o seu valor, para todo o país, ascenderia (col. 3), entre 1961 e 1975, a 83 milhões de contos (5,5 milhões de contos por ano, em média).

Somente a diferença entre 180 e 83, ou seja, 97 milhões de contos, é pois imputável à situação de guerra. Isto é: apenas 53% das despesas com as Forças Armadas, ocorridas em todo o país (Europa e Ultramar), de 1961 a 1975 (ambos inclusive), são imputáveis à guerra da Guiné, de Angola e de Moçambique. A guerra, em termos de acréscimo das despesas com as Forças Armadas, custou a todo o país (Europa e Ultramar), a preços correntes, 97 milhões de contos, ou seja, em média, 6,5 milhões de contos por ano.

Em relação às despesas públicas globais de Portugal europeu, Guiné, Angola e Moçambique, as quais ascenderam, entre 1961 e 1975, a preços correntes, a 732 milhões de contos (col. 1 e col. 2), as despesas com as Forças Armadas, em todo o país, (180 milhões de contos), representam 25% daquelas. As despesas imputáveis à guerra (97 milhões de contos) representam 13,3 % das mesmas. Isto é: fez-se face ao acréscimo das despesas com as Forças Armadas resultantes da guerra desencadeada na Guiné, em Angola e Moçambique agravando de 13,3% as despesas públicas de todo o país.

A comparticipação da Guiné, de Angola e de Moçambique para as despesas com as Forças Armadas em todo o país foi, de 1961 até ao ano da «independência» de cada uma daquelas Províncias, de 28 milhões de contos (col. 5), o que representa 10% das suas despesas públicas, no mesmo período, a preços correntes, as quais ascenderam a 273 milhões de contos (col. 2). A comparticipação de Portugal europeu foi, entre 1961 e 1975, de 152 milhões de contos (col. 6), o que equivale a 33% das suas despesas públicas, que totalizaram 459 milhões de contos naquele período (col. 1).

A comparticipação para as despesas das Forças Armadas, em todo o país, de Portugal europeu, das Províncias em guerra, e do conjunto Portugal europeu, Guiné, Angola e Moçambique, evoluíram, de 1961 a 1973, em relação às respectivas despesas públicas, da forma indicada no II Quadro.

Ano Portugal (Europa) Guiné, Angola e Moçambique Portugal (Europa), Guiné, Angola e Moçambique
1961 35 7 25
1962 37 10 27
1963 37 9 26
1964 36 10 27
1965 38 10 28
1966 39 11 29
1967 41 12 30
1968 45 14 34
1969 46 13 32
1970 37 12 28
1971 32 12 24
1972 30 11 23
1973 29 13 23
II QUADRO
EVOLUÇÃO DA COMPARTICIPAÇÃO DAS DESPESAS COM AS FORÇAS ARMADAS EM TODO O PAÍS (PORTUGAL EUROPEU E TODO O ULTRAMAR)
em percentagem das respectivas Despesas Públicas

As despesas com as Forças Armadas foram pesando, de 1961 a 1968 e 1969, sucessivamente mais nas despesas públicas de todo o país e de Portugal europeu, atingindo então as correspondentes percentagens valores de 34% (col. 3) e 46% (col. 1) respectivamente. Após esses anos, aquelas despesas foram pesando sucessivamente menos, descendo em 1973 as correspondentes percentagens para valores de 23% e 29%16, respectivamente. Inversamente, as despesas das Províncias em guerra foram, no seu conjunto, suportando percentagens modestas mas com um andamento geral crescente das despesas com as Forças Armadas, que, de 7% em 1961, haviam atingido em 1973, 13% das respectivas despesas públicas (col. 2).

Resumindo: um esforço financeiro que se traduziu num suplemento de 13,3% nas despesas públicas globais de Portugal europeu, Guiné, Angola e Moçambique (despesas públicas que desde 1969 se repartiam com mais equidade por aquelas parcelas do conjunto nacional) e que, para Portugal Europeu se estava tornando, desde então, menos pesado, não se poderia considerar, em 1974, insuportável.17 Isto abstraindo de que as despesas com as Forças Armadas constituíram também fonte dos mais diversos e importantes investimentos, entre outros, nos sectores da saúde, da educação, das infra-estruturas e do equipamento diverso, dos abastecimentos, dos transportes… Pode afirmar–se que a guerra foi excepcionalmente económica em despesas não rendíveis. Mesmo assim estava-se longe de extrair todo o partido possível das despesas, tanto na forma de as aplicar, como, especialmente na forma de geograficamente as distribuir. As opiniões que se expendiam sobre esse aspecto, com sentido construtivo, não deixariam de conduzir aos ajustamentos necessários e a resultados sucessivamente melhorados.18

Não seria pelo impacto económico-financeiro negativo que se perderia a guerra. Chegámos a Abril de 1974 com um volume de reservas ouro constituídas por 889 toneladas de ouro fino, que nos colocava no 6.º ou 7.º lugar entre os países do Mundo. O produto nacional bruto no Portugal europeu, a preços de mercado e a preços constantes de 1963, havia crescido 5,5 % por ano em 70/71, 8,7% em 71/72 e 11,4% em 72/73. O IV Plano de Fomento previa um crescimento anual médio de 7,5%. Em Angola, apesar da guerra, a população crescera de 4 680 milhares de habitantes em 1960 para 5 673 em 1970, atingindo o ritmo de crescimento de 1,62% por ano, naquele período, contra 1,54% e 1,03% nas décadas anteriores. O produto nacional bruto a preços de mercado, a preços constantes de 1963, crescera ao ritmo de 6% por ano, entre 1963 e 1973. O IV Plano de Fomento previa um ritmo de crescimento de 7% por ano. Em Moçambique a população crescera, no decénio 1960-1970, de 6 604 para 8 203 milhares de habitantes, ao ritmo de 2,23% por ano. A preços de 1963, o produto nacional bruto, a preços de mercado crescera anualmente, em média, 8%. O IV Plano de Fomento previa um ritmo de crescimento do produto de 10%/ano.

Infelizmente não se pode dizer que a «paz» trazida pelo 25 de Abril se não venha a perder pela situação económico-financeira em que mergulhou o país, que, como vimos, estava, em 25 de Abril de 1974, próspero e progressivo. O produto interno bruto, a preços de mercado e a preços constantes de 1970, teria crescido timidamente 3,8%, de 73 para 74, e descido de 3,6%, de 74 para 75, mantendo-se pois em 1975 ao nível de 197319, como se os anos de 74 e de 75 fossem inexistentes para o progresso do trabalho e da produção nacionais… Entretanto a população aumentou e, consequentemente, no seu conjunto empobreceu…

Dificuldades sentidas pelas populações na sua vida e, ou, grandes baixas sofridas na guerra poderiam originar tensões sócio-políticas insuportáveis. Estaria isso a verificar-se, no princípio de 1974, nalguma parcela do país? Quanto a empobrecimento e consequente baixa de nível de vida, ocasionados pela guerra, os números e índices citados mostram-nos que tal se não verificava.

No que se refere a baixas sofridas pelas Forças Armadas, o IV e V Quadros revelam a situação desde praticamente o início da guerra até 30 de Abril de 1974.

Guiné Angola Moçambique
Ano Efectivos % Efectivos % Efectivos % Total
1961 39 46920 39 46920
1962 43 95620 43 95620
1963 12 96020 47 78920 60 74920
1964 12 491 16 45 791 59 19 049 25 77 331
1965 19 462 18 61 676 58 26 139 24 107 277
1966 23 239 20 60 457 51 33 913 29 117 609
1967 24 250 19 62 013 49 39 728 32 125 991
1968 25 631 19 66 138 50 41 824 31 133 593
1969 28 446 21 64 596 47 43 604 32 136 646
1970 25 504 19 62 773 47 44 681 34 132 958
1971 26 089 20 58 714 46 44 429 34 129 232
1972 27 342 20 64 739 46 48 101 34 140 182
1973 29 056 20 64 054 43 54 127 31 147 237
Soma 254 470 18 742 165 53 395 595 29 1 392 230
Homens Mobilizados21 141 763 18 403 110 51 251 925 37 796 798
III QUADRO
EFECTIVOS DAS FORÇAS ARMADAS NOS 3 TEATROS DE OPERAÇÕES
Percentagens sobre o total
Designação Guiné22 Angola23 Moçambique24 Soma Guiné Angola Moçambique
1. MORTOS EM COMBATE
Armada 42 13 14 69
Exército 981 1 088 970 3 045
Força Aérea 55 41 55 151
Soma 1 084 1 142 1 039 3 265 33 35 32
2. MORTOS POR OUTROS MOTIVOS25
Armada 51 59 15 125
Exército 690 1 344 646 2 690
Força Aérea 50 126 94 270
Soma 791 1529 755 3 075 26 50 24
3. MORTOS 1 875 2 671 1 794 6 340 30 42 28
4. FERIDOS EM COMBATE
Armada 376 11 27 474
Exército 5 522 4 205 2 149 11 876
Força Aérea 263 196 69 528
Soma 6 161 4 472 2 245 12 878 48 35 17
5. FERIDOS POR ACIDENTE
Armada 122 194 50 366
Exército 2 014 6 303 6 030 14 347
Força Aérea 31 98 199 328
Soma 2 167 6 595 6279 15 041 14 44 42
6. FERIDOS EM COMBATE + ACIDENTE 8 328 11 067 8 524 27 919 30 40 30
7. DOENTES
Armada 751 784 294 1 829
Exército 15 360 36 272 29 514 11 146
Força Aérea 351 342 618 1 311
Soma 16 462 37 398 30 426 84 286 20 44 36
8. FERIDOS EM COMBATE + ACIDENTE + DOENTES 24 790 48 465 38 950 112 205 20 43 35
IV QUADRO
BAIXAS DAS FORÇAS ARMADAS EM MORTOS, FERIDOS E DOENTES, ATÉ 1 DE MAIO DE 1974
Por Teatro de Operações26 Nos 3 Teatros de Operações
Designação Guiné Angola Moçambique Total Por dia27 Por dia e mil combatentes28
1. Mortos em combate 1 084 1 142 1 039 3 265 0,80 0,007529
2. Mortos por outros motivos 791 1 529 755 3 075 0,75 0,0070
3. Mortos
(1 + 2)
1 875 2 671 1 794 6 340 1,55 0,014
4. Feridos em combate 6 161 4 472 2 245 12 878 3,16 0,03029
5. Feridos em acidente 2 167 6 595 6 279 15 041 3,69 0,034
6. Feridos
(4 + 5)
8 328 11 067 8 524 27 919 6,85 0,064
7. Doentes 16 462 37 398 30 426 84 286 20,68 0,19
8. Feridos por acidente e doentes
(5 + 7)
18 629 43 993 36 705 99 327 24,37 0,2329
9. Feridos e doentes
(6 + 7)
24 790 48 465 38 950 112 205 27,53 0,26
10. Deficientes30 3 835 0,94 0,0088
V QUADRO
BAIXAS DAS FORÇAS ARMADAS — MÉDIAS

Concluímos do V Quadro que, para defesa do Ultramar, no conjunto dos Teatros de Operações da Guiné, de Angola e de Moçambique, na guerra de 1961 a 1974, em cada 100 dias e em média (col. 5) morreram 80 homens das nossas Forças Armadas31 em combate e 75 por outros motivos: foram feridos em combate 316 e por acidente 369; destes 685 feridos em combate ou por acidente, cerca de 94 ficaram deficientes. Isto aconteceu num efectivo médio de 107 095 homens.

Choramos os nossos mortos e lamentamos os nossos deficientes.32 Mas se uma Pátria não pudesse suportar as baixas registadas no V Quadro, em 13 anos de uma guerra pela qual passaram cerca de 800 mil homens das Forças Armadas (Conf. III Quadro, col. 7), a sua existência estaria irremediavelmente condenada.33 Numa guerra clássica não nuclear, tipo de guerra para a qual as Forças Armadas (e a Nação) devem estar moralmente preparadas, e que poderá ser uma fase de uma guerra de amanhã, para igual efectivo médio de 107 095 homens, o mesmo número de mortos e de feridos em combate teria lugar, segundo os índices da II Grande Guerra, ao fim de sete meses de guerra…

Também para defesa do Ultramar34, interviémos na Guerra de 1914-18. Batemo-nos em França, no Sul de Angola e no Norte de Moçambique. Embarcaram então para França 57 000 combatentes, e para a África 32 000 a que se juntaram 25 000 africanos ali recrutados e instruídos, tudo num total de 114 000 homens em armas. A guerra, para nós, durou praticamente 2 anos. O número de mortos sofridos foi de 7 908 e o de incapacitados de 14 884.35

A avaliar pelo número dos nossos mortos em combate em permilagem dos efectivos (Conf. VI Quadro), a guerra atingiu para o conjunto dos três Teatros de Operações, uma agudeza máxima em 1966 (2,69 mortos por mil combatentes). Esta permilagem diminuiu depois continuamente até 1973 (1,83 mortos por mil combatentes). Em Angola, desprezando os três anos iniciais de guerra, por se não dispor de valores de efectivos, de total confiança, o ano de 1964 foi o mais agudo (2,21 mortos por mil combatentes); em 1968 há um novo agravamento com 1,74 mortos por mil combatentes. Depois a situação melhora sucessivamente, chegando-se a 1973 com 0,64 por mil combatentes: o número absoluto de mortos naquele ano foi apenas de 41 contra 115 em 1968…

Designação 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970/7136 1972 1973
GUINÉ
Números absolutos 36 77 81 118 136 109 112 263 106
Por mil dos efectivos 2,1837 6,16 4,16 5,08 5,61 4,25 3,94 3,33 3,64
ANGOLA
Números absolutos 134 113 83 101 27 90 88 115 76 123 62 41
Por mil dos efectivos 3,3937 2.6237 1.7437 2,21 1,41 1,49 1,42 1,74 1,18 1,08 0,95 0,64
MOÇAMBIQUE
Números absolutos 238 73 108 93 91 126 257 131 123
Por mil dos efectivos 0,10 2,79 3,18 2,34 2,18 2,29 2,88 2,72 2,27
NOS 3 TEATROS
Números absolutos 180 241 316 317 315 314 836 270
Por mil dos efectivos 2,32 2,24 2,6939 2,52 2,36 2,30 2,08 1,83
Por mil dos efectivos — valor médio 2,2339
VI QUADRO
MORTOS EM COMBATE, POR ANO, NOS 3 TEATROS DE OPERAÇÕES

De qualquer forma, dir-se-á que, com ou sem impacto sócio-político justificado, parte da camada mais jovem do quadro permanente das Forças Armadas claudicou e desistiu de lutar. É cedo para conhecer as razões profundas dessa atitude. Mas não foram os mais provados pela guerra que fraquejaram. A medida em que, nesse comportamento, pesou a acção de revolucionários ao serviço de interesses que não eram portugueses, de alguns elementos ambiciosos do poder, do posto, do cargo, de frustrados nos foros privado e profissional, não está ainda completamente averiguada e só indícios a revelam. As armas e os serviços a que pertenciam muitos dos jovens do quadro permanente das Forças Armadas que se negaram a combater pela sua Pátria, apesar dos seus juramentos40, a que foram infiéis, não os identifica, como dissemos, com os mais sacrificados. Pelo contrário, muitos dos mais radicais revolucionários do quadro permanente provinham de ramos não essencialmente combatentes das Forças Armadas: — Engenharia, Transmissões, Cheret, Administração Militar, Armada (elementos embarcados). Será interessante fazer a lista dos revolucionários militares e carregá-la com o período operacional desempenhado e local onde, o serviço prestado, os louvores e condecorações recebidos ou não recebidos (comparados com os de camaradas não revolucionários em situações idênticas), o cadastro académico e disciplinar a partir do ingresso na Academia Militar (ou no Colégio Militar, para muitos), as frustrações privadas e oficiais conhecidas, as campanhas anteriores (particularmente se se trata ou não de traumatizados pelo colapso de Goa). Ter-se-ão grandes revelações.

Os números de faltosos, compelidos, refractários e desertores41, durante os anos de guerra e imediatamente antes e depois dela, não puderam ser obtidos com exactidão. Os que estivemos ligados aos problemas da guerra sabemos que tais números foram, e continuam a ser, empolados por forma verdadeiramente escandalosa, com objectivos que estiveram e estão à vista das pessoas conscientes e sérias do nosso país.

No VII Quadro resumimos os elementos que pudemos obter, no que se refere ao contingente geral de Portugal europeu.

Anos Percentagem de Faltosos
em relação aos Incorporados
Percentagem de Compelidos
+ Refractários em relação aos Incorporados
1958-1960 40 2,842
1961-1973 29 2,1
1974-1977 49 3,3
VII QUADRO
FALTOSOS, COMPELIDOS E REFRACTÁRIOS DO CONTINGENTE GERAL DE PORTUGAL EUROPEU

A análise do VII Quadro mostra que no período da guerra (1961-1973) a percentagem dos faltosos em relação aos incorporados (col. 1) foi bastante menor (29%) do que antes e depois da guerra (40% e 49%, respectivamente). O mesmo aconteceu relativamente a percentagens de compelidos e refractários (col. 2): 2,1% durante a guerra, 2,8% antes e 3,3% depois. Por outras palavras: por cada 100 indivíduos incorporados nas fileiras, havia 40, entre 1958 e 1960, 29, durante o período da guerra, e 49, após o 25 de Abril, que tinham faltado à Junta de Inspecção na época própria; por cada 1 000 indivíduos incorporados, 28 entre 1958 e 1960, 21, durante a guerra, e 33, após o 25 de Abril, não compareceram na Junta, na época da incorporação, ou, sendo aptos, não se apresentaram à incorporação.

O número total de compelidos e refractários do contingente geral de Portugal europeu, durante os anos de guerra, foi de cerca de 17 250, numa média anual de 1 327. Se não tivesse havido guerra, e o número de incorporados se tivesse mantido no nível de 1958-1960 (hipótese teórica, e desfavorável, pois as necessidades, mesmo na ausência de guerra, não teriam deixado de crescer), o número de compelidos e refractários, no período 1961-1973 teria sido da ordem dos 9000. Isto quer dizer que somente 8 250 homens fugiram à guerra antes da incorporação. Em cerca de 1 140 000 indivíduos recenseados entre 1961 e 1973, dos quais foram incorporados cerca de 820 000, a situação de guerra levou cerca de 8250 a fugir à incorporação, o que representa 7 em cada mil dos recenseados, ou 10 para cada mil dos incorporados…

Os números relativos a oficiais e sargentos do quadro de complemento (milicianos) não se puderam isolar. Têm talvez expressão ligeiramente menos favorável que as médias referidas. Mas sobretudo incluem vergonhosos exemplos de filhos de famílias conhecidas…43

Não foi possível conseguir elementos relativos às províncias ultramarinas. O conhecimento directo das circunstâncias permite-nos afirmar que a situação, se algo diferente, o não era para pior.44

Quanto a desertores apenas obtivemos os dados relativos aos 3 Teatros de Operações, de 1961 a 1969, que constam do VIII Quadro. Não há motivos para supor que as médias se tenham alterado posteriormente, até porque do ponto de vista de mortes em combate, e de esforço financeiro, o período de 1961 a 1969 é, como vimos, o mais agudo. Sendo assim, o número de deserções verificadas nos 3 Teatros de Operações, que até 1969 foi de 103, teria sido até final de 1973 de 181. Isto para um efectivo médio de 107 095, numa guerra que durou 13 anos (1 392 000 homens × ano).

Guiné Angola Moçambique
Ano Efectivos Desertores Efectivos Desertores Efectivos Desertores
1961 39 46945 2 0,05
1962 43 95645 0 0
1963 12 96045 4 0,31 47 78945 4 0,08
1964 12 491 3 0,24 45 791 14 0,31 19 049 4 0,21
1965 19 462 5 0,26 61 676 20 0,32 26 139 0 0
1966 23 239 3 0,13 60 457 6 0,10 33 913 3 0,09
1967 24 250 0 0 62 013 3 0,05 39 728 0 0
1968 25 631 5 0,20 66 138 1 0,02 41 824 3 0,07
1969 28 446 12 0,42 64 596 8 0,12 43 604 3
Soma 32 58 13
VIII QUADRO
DESERÇÕES NOS TEATROS DE OPERAÇÕES (DE 1961 a 1969)
Teatro Média ‰
Guiné 0,21
Angola 0,14
Moçambique 0,064
Nos 3 Teatros 0,1346
Médias ‰

Constitui uma honra para a Nação, e para as Forças Armadas, verificar o procedimento excepcional traduzido pelos números apontados. Deve ser motivo de legítimo orgulho saber que quanto a faltosos, como a compelidos e refractários (e certamente a desertores de Portugal europeu, pois se trata de situações que estatisticamente se acompanham), os índices relativos ao contingente incorporado melhorou, durante a guerra, relativamente ao período anterior a 1961 e posterior ao 25 de Abril. Em particular, e no que se refere a desertores em campanha, os número e índice apresentados, traduzem um comportamento que se julga sem paralelo no Mundo.47 Tudo afirma uma atitude que mede bem o grau de adesão do povo, de todas as etnias, chamado às fileiras, à linha tradicional, histórica, da defesa do Ultramar.48 Que extraordinário e desonroso privilégio ser-se compelido ou refractário, entre 8 250, numa incorporação de 820 000 homens ou ser-se desertor em campanha, entre 181, de umas Forças Armadas que, em campanha, foram servidas por 800 000 homens!

Sem outros comentários, pensamos que a situação sócio-económica, vivida no princípio de 1974, fica lapidarmente definida na opinião que nos foi manifestada por um dos mais importantes militares-políticos do 25 de Abril, e também um dos mais sinceros e espontâneos, pouco tempo antes da eleição presidencial, na altura em que ainda ocupava lugar cimeiro nas estruturas governativas do país: — o 25 de Abril teria tido lugar na pior altura possível.49 Mercê do lugar cimeiro que ocupava esse importante político e revolucionário, encontrava-se em condições de conhecer e avaliar em que medida o país estava então a ser catapultado para o progresso. Se ele e os seus companheiros, revolucionários do 25 de Abril o tivessem sabido oportunamente, a Revolução teria sido adiada, ou não se faria. De qualquer modo ter-se-ia chegado a uma plataforma com o Governo daquele tempo…50

III. POSIÇÃO DIPLOMÁTICA

Qual a situação no campo da diplomacia e política externa de Portugal no princípio de 1974? Contaríamos com inimigos por todo o lado, e estaria, nesse campo, a guerra perdida como o têm apregoado políticos tornados importantes, que então se encontravam refugiados no estrangeiro, em contacto com o inimigo e dando-lhe colaboração? Ou esse ponto de vista resulta apenas de uma informação evidentemente limitada e de uma visão naturalmente tendenciosa da situação, a acrescer à necessidade de justificar por variadas vias a chamada «descolonização»?

Vamos, sucintamente descrever a situação que se vivia no princípio de 1974 no plano multilateral das relações de Portugal com a ONU e a NATO e no plano bilateral das relações de Portugal com alguns importantes países.52

Vejamos o que se passava quanto à ONU e à NATO.

Depois das resoluções básicas votadas nos fins da década de 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, as Nações Unidas haviam atingido, em relação a Portugal, um ponto morto. No âmbito da 4.ª Comissão da Assembleia Geral, haviam sido aprovadas as resoluções mais extremistas: nem a Comissão, nem a Assembleia podiam ir mais além. Uma só medida poderiam ainda votar: a expulsão de Portugal da Organização. Mas neste ponto as delegações afro-asiáticas estavam profundamente divididas. Esta divisão tornava-se aparente em relação àquele problema, mas no fundo reflectia toda uma divisão quanto à política portuguesa. Com efeito, esse abismo entre as delegações africanas resultava do critério de apreciação de Portugal em África. Para alguns países africanos o statu quo português em África não deveria ser alterado (pelo menos nas décadas mais próximas) porque: constituía um obstáculo à penetração imperialista (de russos e americanos): representava possibilidade de desenvolvimento técnico e económico para a África Meridional; tomava politicamente mais aceitável (em virtude do nosso multi-racialismo) uma gradual situação de descompressão em toda aquela área; significava factor de apoio a certos países africanos contra pressões exteriores: não causava receios dado que, se Portugal era suficientemente forte no plano militar para se manter, não o era para implicar qualquer perigo. Este ponto de vista era, pelo menos partilhado pelos seguintes países: Zâmbia, Malawi, Suazilândia, Lesoto, mesmo Zaire, entre os países vizinhos: e pelo Senegal, Costa do Marfim, Quénia, Serra Leoa e talvez outros. Em posição oposta estavam os países extremistas, que advogavam, evidentemente, uma atitude drástica. Mas aquela divisão apenas porque existia, enfraquecia o bloco africano: com o desejo de não a tornarem ostensiva, ficaram os países africanos paralisados.

Se no âmbito da 4.ª Comissão e da Assembleia não era possível ir mais longe contra Portugal, no Conselho de Segurança isso era viável. Mas aí jogavam outros factores: a cisão entre as grandes potências. Teoricamente o Conselho poderia tomar uma decisão extrema: declarar guerra a Portugal e enviar uma força militar internacional. Na prática nunca o poderia fazer: porque se essa medida fosse tomada em condições favoráveis à União Soviética, enfrentaria o veto da Inglaterra, França e Estados Unidos: se tomada de forma favorável a estes últimos países, teria o veto soviético: porque as experiências anteriores das Nações Unidas na matéria haviam sido desastrosas: porque as Nações Unidas, ainda que o desejassem, não tinham recursos para o fazer.

À luz do que precede, tudo o que pudesse ser tentado contra Portugal era marginal e periférico. Audição de peticionários, reconhecimento de governos no exílio por alguns países ou mesmo pela ONU, apenas poderiam pesar e revestir-se de importância e virtualidade política se e quando Lisboa resolvesse que eram mais importantes os «slogans» internacionais e os interesses alheios do que os interesses portugueses ou do que o carácter prioritário da soberania nacional e os princípios teóricos, legais e políticos em que esta se apoiava. Quer dizer: quando a política portuguesa passasse a ser a política de outros.

No âmbito da NATO e ao nível de governo, a situação era, em princípios de 1974, de compreensão e, nalguns casos, de apoio. Há que pôr de parte, evidentemente, as atitudes demagógicas de alguns países como a Noruega, a Dinamarca ou o Canadá; a sua posição era materialmente irrelevante. No mais havia a compreensão silenciosa e um apoio sub-reptício da Inglaterra; a compreensão e já a aceitação e um apoio larvado dos Estados Unidos: e a aprovação e o apoio bilateral explícito e concreto da França e da Alemanha Federal. Tudo isso se fundara em dados estratégicos e políticos: começava já nessa altura a surgir a visão, que se tem grandemente acentuado depois, do desequilíbrio de forças que resultaria para o Ocidente da perda de posições portuguesas no Atlântico Sul e no Índico. Essa visão levava já então a considerar os perigos que adviriam para a rota do Cabo, para a América Latina e para o acesso ao Golfo Pérsico, se os Estados Unidos e a Europa deixassem de possuir zonas de apoio na África Austral.

Neste sentido, a Assembleia dos Parlamentares da NATO havia aprovado, já em 1972, um relatório53 salientando aquela situação e os riscos que resultariam se os dados políticos e estratégicos fossem substancialmente modificados na África Meridional.

Analisemos agora as relações bilaterais com alguns dos mais importantes países.

Depois da hostilidade durante a presidência de Kennedy, o governo americano, sob Johnson e Nixon, revelou crescente cordialidade para com Portugal: além dos perigos acima referidos, e como consequência dos mesmos, estavam em causa a base dos Açores, a importância decisiva de Cabo Verde, a baía de Nacala, etc., que muito preocupavam a Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos. A reunião Nixon-Pompidou na Terceira reflectiu um pouco aqueles factos.

Embora publicamente não fosse ostensivo, era decidido, no plano bilateral, o apoio que nos era dado pela França e pela Alemanha Federal: fornecimento de armamento, sem querer saber do seu destino e uso; facilidades de crédito: apoio político e diplomático junto de outros países (designadamente os próprios Estados Unidos). Os substanciais créditos concedidos para a construção de Cabora-Bassa (a cuja realização também concorreu um consórcio americano e outro inglês, ambos com a aprovação dos respectivos governos), constituíram, além de apoio político em face da oposição de alguns países africanos àquela obra, também uma prova de confiança.

Apesar de na Inglaterra ser trabalhista o governo da altura, e não obstante os ataques de um sector da imprensa, o apoio que nos era concedido traduzia-se em facilidades de crédito, no suporte que a posição portuguesa recebia na EFTA e noutras organizações internacionais.

A própria posição do Brasil mudara inteiramente depois da revolução de 1964. A visita do Presidente da República do Brasil a Portugal, em 1973, foi prova irrefutável disso.

Também em África, à parte os extremistas indiferentes ou hostis, os países moderados se aproximavam progressivamente de Portugal. Tínhamos relações normais com o Malawi, Lesoto e Suazilândia e relações de facto com o Zaire e a Zâmbia que, de vez em quando, eram visitadas por missões portuguesas. Chegou a estar aprazado um encontro, em Roma, entre altos representantes de Portugal e de um importante país africano nosso vizinho.

Antecedendo a situação que rapidamente se descreveu, dia após dia, depois de 1961, os nossos estadistas e os nossos estrategas proclamaram o valor do Ultramar português para o Mundo ocidental e o perigo que representava o seu controlo por poderes hostis ao Ocidente. A nossa experiência histórica de nação e país espalhado pelos continentes, e o conhecimento pormenorizado do potencial geo-estratégico de que na realidade dispúnhamos, dava aos mais esclarecidos dos nossos responsáveis a percepção nítida daquele perigo. Dia após dia apontámos, sem erro, as forças que haviam erguido e estavam sustentando os movimentos inimigos. Em anos sérios da nossa guerra tentámos despertar o Ocidente, gritando que nos considerávamos sós, num combate que a todos interessava, embora orgulhosamente, como portugueses inteiros, que então praticamente todos ainda éramos. Está à vista do Ocidente a razão que nos assistia, agora bem concretizada nessa trágica viragem estratégica sofrida pelo Mundo, após o 25 de Abril.

Em face de tudo isto, o que é que explica então a festa que é feita, aparentemente sem justificação, nalguns meios internacionais do Ocidente, a certos dos mais importantes responsáveis pelo 25 de Abril e pelas suas consequências?

Em paralelo com o desprezo de que colectivamente somos alvo por parte de países europeus e africanos, companheiros de ontem54, duas circunstâncias muito contam para justificar o júbilo revelado principalmente por certos meios nórdicos, da Alemanha e dos Estados Unidos.

Por um lado, tem de se ter presente que, na complexidade da vida política e económica contemporânea, a estratégia de aproximação indirecta recorre cada vez mais a processos de maior e mais requintada subtileza. Ambições políticas e interesses económicos, velhos ou novos, que permanentemente pairavam sobre o Ultramar português, julgaram poder assim ser servidos e simultaneamente ser camuflados como nunca. A hipótese de nos substituírem sorria a certos meios político-económicos ocidentais e constituía evidente objectivo soviético. O risco de desencadear um processo que fosse favorável não aos próprios, mas aos soviéticos, ou que não pudesse ser controlado, ia sendo avaliado pelos mais sérios níveis responsáveis ocidentais e constituía um travão. Abandonado, ou entregue, com o 25 de Abril o Ultramar, deixámos as mãos livres aos grandes do Mundo para jogarem os seus trunfos, agora segundo métodos directos ou indirectos, que não eram utilizáveis quando o Ultramar era efectivamente Portugal e Portugal possuía um governo que efectivamente governava com patriotismo, coragem, dignidade e independência possível. Utilizando tais métodos, nunca se sabe quem alcançará, a prazo, a vitória e a conservará por mais tempo. Após a última Grande Guerra, os Estados Unidos foram levados pelas circunstâncias, e também pelo seu interesse, a tentar controlar o Mundo. Apesar do seu poderio militar e económico e da sua posição estratégica, a partir de determinado grau de dispersão, tiveram de desistir e de concentrar os seus esforços. Será a União Soviética capaz de superar os Estados Unidos, vencendo a sua posição de potência de terra, procurando apoiar-se essencialmente nos outros, objecto da «sua ajuda», não obstante os conflitos internos que surgem à superfície pela voz e acção de intelectuais e de jovens, e da debilidade económica de alguns sectores essenciais que parece intrínseca do sistema? Ou será vítima deste seu esforço, como sempre tem acontecido na História, em casos semelhantes e quando, além do resto, à dispersão corresponde a introdução de corpos estranhos, em organismos que acabam por reagir55?

Outra razão consiste em verificar que, com o 25 de Abril, se abriu caminho à comunização de Portugal, que esteve praticamente a verificar-se entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975. A comunização de Portugal muito facilitaria a comunização da Península, sobretudo quando a vida política, e até física, do Generalíssimo Franco estava no fim. A comunização da Península seria o princípio da então, talvez, imparável comunização da Europa. E este é um perigo que não pôde, nem pode, deixar de fazer estremecer os meios ocidentais. E daí que políticos que arvorem, com sinceridade real ou aparente, uma bandeira de combate a esse perigo, e que consigam convencer do seu poder, da sua decisão e da sua legitimidade, sejam festejados e apoiados como salvadores.

Enquanto os dois tipos de circunstâncias que se indicaram — serviço prestado com a entrega ou abandono do Ultramar e oposição à implantação do comunismo —, recaírem no mesmo grupo de pessoas, elas serão duplamente festejadas pelos meios ocidentais, como referimos. Desde que venham a envolver grupos diferentes o primeiro irá sendo naturalmente esquecido, pois os beneficiários potenciais da entrega ou abandono do Ultramar, no fundo, reconhecem que os serviços recebidos foram prestados à custa dos interesses da própria Pátria, o que é desprezível.

Gen. Silvino Silvério Marques

GUINÉ

Gen. Bethencourt Rodrigues

I. NOTA PRÉVIA

Sobre a situação na Guiné, no 1.º trimestre de 1974, apresenta-se uma sucessão de elementos de informação que, embora ligados e agrupados por uma linha de nexo, são de certo modo independentes uns dos outros.

Pareceu que esta forma, aliás de regra em relatórios militares, não prejudicaria o âmbito e extensão dos assuntos que se pretendeu focar e poderia com mais rigor satisfazer o propósito, que desde já claramente se expressa de referir elementos concretos, factos, quantificações.

Na verdade, pretendeu-se evitar a introdução de tudo que pudesse ser influenciado por apreciações subjectivas. Nesta linha, propositadamente se omitiram referências que houvessem de partir de uma base daquela natureza, como sejam opiniões sobre tendências, orientações e inclinações de grupos sociais e, muito principalmente a apreciação de factores morais.

No entanto, tem-se como certo que as guerras sempre foram e continuam a ser lutas de vontades…

II. SITUAÇÃO POLÍTICO-ECONÓMICO-SOCIAL

A situação vivida na Guiné, nos princípios de 1974, pode ser caracterizada pelos seguintes pontos:

1 — O mais importante acontecimento político-social, nos três primeiros meses de 1974, foi o V Congresso do Povo, realizado de 21 de Fevereiro a 10 de Abril.

Manifestação de diálogo entre o Povo e o Governo, através do qual se conferia às populações a possibilidade de uma participação mais efectiva na vida da comunidade, o V Congresso do Povo desenvolveu-se nas suas fases regional e provincial, mobilizando alguns milhares de representantes das populações e dando lugar a 24 sessões de 4 reuniões cada, em 19 localidades da Guiné, além de Bissau.

Se a realização do Congresso, pelo quinto ano consecutivo, traduziu adesão das populações e, pelo lado da Administração, continuidade de acção e capacidade de execução, de salientar é também que trabalhos preparatórios, deslocamentos de autoridades e participantes e reuniões se processaram sem interferência do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), embora essa actividade se estendesse a todo o território da Província.

2 — Ainda sem interferência do PAIGC se realizou a visita do Ministro do Ultramar, de 15 a 20 de Janeiro. O Ministro deslocou-se a Teixeira Pinto, Cacheu, Pelundo e Farim, no norte, a Nova Lamego e Bafatá (viajando de automóvel entre estas duas localidades), no leste, e a Catió e Caboxanque, no sul.

3 — No princípio do ano iniciou-se a execução do Orçamento da Província, no montante de cerca de 380 000 contos, um aumento de 63 mil contos (quase 20 %) sobre o orçamento do ano anterior.

Também se deu início à execução do Plano de Empreendimentos (IV Plano de Fomento), dotado com 155 000 contos e especialmente orientado para os sectores da Educação, Saúde, Vias de comunicação, Agricultura e Melhoramentos urbanos e rurais.

4 — No sector da Educação, existia uma população escolar de cerca de 61 000 alunos, com 2 200 professores.

Desta população pertenciam ao ensino primário cerca de 56 000 alunos, que se repartiam por 550 salas de estudo, onde ensinavam 1050 professores (830 agentes de ensino e 220 militares). No ciclo preparatório estavam matriculados 3800 alunos e 1700, no ensino secundário.

5 — A Guiné dispunha de 1 Hospital Central, 3 Hospitais Regionais, 6 Hospitais Rurais, 50 Postos Sanitários (24 com médico e enfermeiro) e 12 Maternidades.

Os Serviços de Saúde contavam com 82 médicos (dos quais 4 civis), 2 farmacêuticos e 1 farmacêutico-analista, 360 enfermeiros e auxiliares de enfermeiro, 2 assistentes sociais e 1 auxiliar social, e 76 parteiras e auxiliares de parteira.

Em 1972 foram dadas 676 000 consultas a doentes civis, sendo 174 000 nos Serviços Provinciais de Saúde e 502 000 pelas Forças Armadas.

6 — Mantinham-se em construção as estradas Jugudul-Bambadinca, Piche-Buruntuma, Catió-Cufar e Aldeia Formosa-Buba.

7 — No sector privado assinala-se a entrada em laboração duma fábrica de cerveja e refrigerantes e dum parque de armazenagem e envazilhamento de gases de petróleo liquefeito, e a construção duma nova unidade hoteleira em Bissau, já em fase adiantada.

8 — Problema que afectava toda a população da Guiné era o do abastecimento de arroz, base primeira da sua alimentação.

Reduzida a produção local a cerca de 50% das necessidades, por aumento do consumo e diminuição da produção, como consequência da guerra e dum certo afastamento do trabalho na terra por parte da população, em especial da mais jovem, desde fins de 71, princípios de 72, a importação passou a encontrar dificuldades crescentes, por força da escassez de cereais nos mercados mundiais e da elevação de preços, quer do produto, quer dos transportes. Assim, em fins de 1973 houve necessidade de contingentar a distribuição e de elevar o preço, tabelado, de 5$50 para 7$00, suportando embora o Governo um encargo não inferior a 2$50/kg.

Estas medidas não foram naturalmente recebidas com agrado pela população, apesar de o arroz ser vendido nos territórios vizinhos a preços muito superiores ao praticado na Guiné (Senegal 14$00 e República da Guiné 22 a 26$00) e de ter havido um aumento do preço de aquisição ao produtor local de cerca de 25%.

Para atenuar uma situação de abastecimento com tendência para se agravar, dada a progressiva retracção do mercado mundial, independentemente de custos, várias acções foram empreendidas, como a diversificação da dieta alimentar tradicional, para o que se recorreu à importação de milho e de feijão, a recuperação de bolanhas e uma intensificação do esforço para o aumento da produção, pelo apoio à cooperativização dos agricultores, distribuição de sementes de arroz seleccionadas e de adubos e apoio técnico dos Serviços Provinciais de Agricultura, além do aumento dos preços de aquisição ao produtor.

9 — Por último assinala-se a contribuição das Forças Armadas para a vida da Guiné, em tarefas de promoção social, de desenvolvimento económico e de assistência, e na ocupação de posições nos quadros dos Serviços Provinciais, por falta de elementos civis que os guarnecessem.

Em Março de 1974 estavam desviados para funções exclusivamente civis 37 oficiais, 50 sargentos e 182 praças, num total de 270 militares.

Em regime de acumulação de funções militares com funções civis havia 137 militares (110 oficiais, 21 sargentos e 6 praças).

— Dos 82 médicos em serviço na Guiné, 76 pertenciam às Forças Armadas e 2 eram seus familiares.

— Cerca de 75% dos professores eram militares ou seus familiares.

— As verbas dispendidas em 1973 pelas Forças Armadas no desenvolvimento sócio-económico ascenderam a cerca de 160 mil contos, assim distribuídos:

  • Comparticipação directa:

    • Saúde — 18 000 contos
    • Educação — 3 000
    • Desenvolv. rural — 20 000
  • Comparticipação indirecta:

    • Vencim. a civis — 61 000 contos
    • Transportes — 61 000

— No Plano de Empreendimentos para 1974 foi atribuída às Forças Armadas a construção de 1500 casas em 44 reordenamentos, 11 postos sanitários e 30 edifícios escolares, bem como a continuação da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba, já em fase adiantada.

— Até fins de 1973 as Forças Armadas haviam construído, no sector do Desenvolvimento Rural, 15 700 casas, 167 escolas, 40 postos sanitários, 56 fontenários e 3 mesquitas, e abertos 144 furos para abastecimento de água.

III. RELAÇÕES COM OS ESTADOS VIZINHOS

1 — A nível oficial eram muito escassas as relações com as autoridades da República do Senegal e nulas com as da República da Guiné.

No entanto, as populações de um e outro lado cruzavam a fronteira com facilidade, para visitar familiares e para comerciar.

2 — Importante era o afluxo de cidadãos dos países vizinhos aos postos sanitários das localidades de fronteira, quase exclusivamente guarnecidos por elementos das Forças Armadas. Em 1973 foram dadas cerca de 60 500 consultas àqueles elementos, que eram mesmo evacuados para o Hospital Central de Bissau, quando requerido pela necessidade de tratamento.

3 — Muitas flagelações de guarnições de fronteira foram executadas de bases de fogos instaladas em território dos países vizinhos e admitia-se que nalgumas participaram unidades do Exército da República da Guiné.

IV. INIMIGO

1 — O inimigo das Forças Armadas Portuguesas que combatiam na Guiné era exclusivamente constituído por elementos instruídos, equipados, armados, organizados e comandados pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), com os seus apoios internacionais. A Frente de Libertação para a Independência da Guiné (FLING) não tinha qualquer expressão no campo militar.

2 — O PAIGC dispunha de inteira liberdade no Senegal e na República da Guiné e recebia total apoio dos seus Governos.

O material de guerra que utilizava provinha dos países de leste e era-lhe fornecido em quantidades vultosas; por outro lado, tratava-se de material moderno e eficiente, adequado às características da luta que se travava.

A assistência de instrutores cubanos manifestava-se abertamente e foi levada ao ponto de esses instrutores se internarem em território da Guiné, integrados em unidades combatentes (por exemplo, intercepção dum forte grupo inimigo, com elementos não-africanos, nas proximidades de Canquelifá, na primeira quinzena de Janeiro 74).

Nas suas acções militares, o PAIGC demonstrava uma certa capacidade de comando e de organização. Esta capacidade de comando revelava-se, por exemplo, no adequado balanceamento de meios para a concretização de esforços sobre sucessivos sectores da fronteira e teve evidente expressão na coordenação duma vintena de flagelações executadas em 20 de Janeiro de 1974, como que a assinalar o primeiro aniversário do assassinato de Amílcar Cabral.

Podia-se reconhecer, todavia, que a sua capacidade de apoio logístico limitava à segunda metade da época seca (Março a meados de Junho) a execução de acções militares de maior vulto, particularmente no interior do território. De facto, se a época das chuvas implicava uma diminuição drástica do número e intensidade das suas acções, principalmente por força de dificuldades de ordem logística, a primeira metade da época seca era aproveitada para a acumulação dos meios necessários para a actuação na segunda metade e isto uma vez mais se viu confirmado no fim do primeiro trimestre de 74.

3 — As facilidades oferecidas ao PAIGC pelos países vizinhos da Guiné permitiam-lhe a instalação nesses países das suas bases, dos seus campos de instrução e dos seus órgãos de comando e políticos, bem como a recepção e encaminhamento dos materiais fornecidos pelos países que o apoiaram.

Do ponto de vista operacional, porém, essas facilidades conferiam ao PAIGC a vantagem extraordinária de poder manobrar à vontade e com segurança total os seus meios, para os concentrar sobre a parte da fronteira onde decidia exercer o esforço. Além disso, sempre que a localização do objectivo e o alcance dos meios de fogo o permitiam, era no território dos países vizinhos que esses meios se instalavam, adquirindo desde logo um grau de segurança que não existiria se a instalação se fizesse em território da Guiné.

4 — A possibilidade de o inimigo manobrar os seus meios em total segurança para os concentrar em áreas de sua livre escolha e actuar a partir delas adquiria particular valor na Guiné, por ser aberta toda a fronteira com os países vizinhos: nenhum obstáculo natural criava dificuldades à penetração e, no leste, o inimigo dispunha até de duas secções de fronteira em esquadro.

Ainda do ponto de vista terreno, e em relação ao inimigo, assinala-se:

  • a existência no interior da Guiné, na transição da região litoral para a interior, de áreas cujas características topográficas (densidade de vegetação, extensões pantanosas e outros obstáculos naturais, falta de vias de comunicação) põem sérias dificuldades à penetração, em especial por unidades militares regulares. Algumas destas áreas constituíram, quase desde o início da subversão, zonas de refúgio de guerrilheiros, onde estes subsistiam com elementos da população, para ali levados voluntariamente ou à força, e donde por vezes saíam para fazer emboscadas, para se abastecer nas vizinhanças ou nos Estados vizinhos ou para a rendição de combatentes. Foram estas zonas de refúgio que alguns jornalistas estrangeiros visitaram e nelas o PAIGC instalou o que chamava os seus hospitais, as suas escolas, as suas lojas comunitárias e os seus órgãos primários de administração;

  • a curta distância a que estas zonas de refúgio se encontram da fronteira, dada a reduzida área da Guiné. Esta circunstância, aliada a um profundo conhecimento do terreno por parte dos guerrilheiros, facilitava a ligação com os países vizinhos e dificultava as acções de intercepção pelas nossas Forças.

— A penetração nas zonas de refúgio, muitas vezes realizada pelas nossas Forças, com resultados diversos, mas sempre causando grande perturbação no dispositivo inimigo, exigia operações de certa envergadura, pelos efectivos e meios empenhados e pelos problemas de apoio logístico que suscitavam.

— Pode afirmar-se com segurança que o somatório das áreas das zonas de refúgio, nem de perto nem de longe, atingia os dois terços da Guiné que o PAIGC reivindicava como superfície da «área libertada». A afirmação é válida mesmo se se considerar a região de Madina do Boé, que há anos deixara de ter guarnição militar, dadas as suas características de região desértica e inóspita e as dificuldades de apoio logístico, o que não impedia que sobre ela se exercesse vigilância aérea e de vez em quando fosse percorrida por patrulhas de reconhecimento.

5 — O ponto mais alto da actividade militar do PAIGC verificou-se no 2.º trimestre de 1973, com o emprego de novos e eficientes foguetes terra-ar, um substancial incremento do número e eficácia de outros meios de fogo e os violentos e prolongados ataques a Guidage, no norte, a Guileje, no sul. Depois disso a acção do inimigo reduziu-se às proporções anteriores, para apresentar um nítido recrudescimento a partir de Março de 74 — o que correspondia, como já se referiu, ao que poderemos chamar «o ciclo de trabalho» do inimigo.

Nesta altura (Março de 74), o esforço inimigo exercia-se sobre as guarnições militares do canto nordeste da Guiné ( região de Canquelifá) e do sul, em especial Jemberém. Gadamel e Bedanda, materializando-se por:

  • maciças, prolongadas e sucessivas flagelações, conseguindo por vezes tiros ajustados que, se não produziam baixas em números significativos, causavam estragos apreciáreis, particularmente nas tabancas construídas junto dos aquartelamentos, desgastavam física e psicologicamente as guarnições militares e intimidavam as populações: as flagelações potentes e duradouras eram sempre realizadas de noite, entre o pôr do sol e as primeiras horas da madrugada, como norma com a lua de quarto crescente a quarto minguante, dispersando-se em seguida as bases de fogos e ocultando-se o material e o pessoal;

  • conjugação das flagelações com a implantação de minas nos itinerários de acesso às guarnições atacadas, eventualmente associadas a emboscadas, numa tentativa de isolamento daquelas guarnições, que o inimigo nunca logrou obter;

  • acções directas sobre tabancas isoladas, incendiando-as e raptando elementos da população.

Apesar da intensidade e recorrência das flagelações (no mês de Março Canquelifá foi flagelada 7 vezes, Bedanda 5, Gadamel 12, Jemberém 6, Caboxanque 11) em caso algum se verificaram tentativas de ocupação dos objectivos atacados e, quando foi possível às Forças Nacionais executarem acções dinâmicas e directas sobre as bases de fogos, elas conduziram sempre ao levantamento destas, à dispersão do pessoal que as defendia e guarnecia e sua subsequente recolha ao abrigo dos territórios vizinhos. Duas interpretações se podem adiantar: ou o inimigo pretendia apenas obter efeito moral sobre os combatentes, com as suas poderosas e frequentes acções de martelamento, para eventualmente conseguir por esta via o abandono das localidades ocupadas, ou reconhecia-se incapacidade para, em luta próxima, abordar e assaltar e, seguidamente, manter a ocupação.

Quanto ao aproveitamento exclusivo das noites com luar para a execução das flagelações, traduzia a preocupação de evitar acções aéreas de ataque ao solo e de observação para regulação do tiro da nossa artilharia, bem como obter uma mais eficaz protecção contra acções directas das nossas Forças sobre as bases de fogos.

A acção sobre as populações tinha em vista dispersá-las, pela insegurança criada e pela demonstração duma superioridade de força, provocando o seu desequilíbrio a favor do PAIGC, e ainda a obtenção de espaços vazios por onde as suas forças se pudessem movimentar livremente.

Num caso e noutro (flagelações e acção directa sobre as populações) parece que o inimigo pretendia concretizar por factos a sua propaganda e a sua manobra psicológica, justificando de qualquer modo os vultosos e variados apoios que vinha recebendo.

6 — No interior do território, a actividade inimiga mantinha o seu padrão habitual de emboscadas, implantação de minas, uma ou outra curta flagelação contra aquartelamentos e acções sobre a população, especialmente raptos, quando as pessoas se deslocaram ou trabalhavam nas lavras. Não era aí, nitidamente, que o inimigo pretendia exercer o esforço.

Bissau, apesar dos seus problemas de cidade em permanente e pouco controlado crescimento, da situação de desemprego de parte da população e da concentração dos principais órgãos administrativos, de comando e de apoio logístico às tropas e à população, manteve-se praticamente ao abrigo de acções do inimigo. Assinala-se apenas uma acção sobre as instalações da Força Aérea em Bissalanca, em 73, e a explosão duma granada num café da cidade, em 26 de Fevereiro de 74, responsável por um morto e 63 feridos. Em 22 de Fevereiro verificou-se o rebentamento duma bomba no Quartel-General do Comando Territorial Independente da Guiné, que provocou estragos materiais, havendo indícios de ter sido colocada por activistas políticos da Metrópole.

7 — O aparecimento na Guiné, em Março de 73, de novos e eficientes foguetes terra-ar, com total efeito de surpresa, determinou alterações na conduta das operações, incluindo o apoio logístico, por força das contra-medidas adoptadas.

A eficácia destas contra-medidas, embora implicando certa redução da nossa liberdade de acção aérea, com repercussões na manobra militar, ficou plenamente provada, pois conseguiram neutralizar quase totalmente aquelas armas: após o período inicial do seu emprego, durante o qual algumas aeronaves foram atingidas, só em 31 de Janeiro de 1974 voltou a ser abatido um avião, cujo piloto pôde ejectar-se e ser recuperado ileso, aliás com a colaboração e apoio da população da área.

V. FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS

1 — As Forças Nacionais eram constituídas por:

  • Órgãos de comando e de apoio logístico, unidades e meios navais da Armada; algumas unidades de Fuzileiros Navais eram integradas por pessoal voluntário da Guiné, com enquadramento europeu:

  • Órgãos de comando e de apoio logístico e unidades do Exército; cerca de 20% das unidades combatentes eram de pessoal recrutado na Guiné e em algumas todo o pessoal era guinéu, incluindo o enquadramento;

  • Órgãos de comando e de apoio logístico e unidades da Força Aérea;

  • Unidades de milícias, integralmente com pessoal da Guiné.

2 — Assinala-se que o efectivo em pessoal armado era constituído, em percentagem superior a 50%, por elementos naturais da Guiné.

3 — O dispositivo militar, com os principais órgãos de comando e de apoio logístico e os principais meios de intervenção em Bissau, cobria todo o território da Guiné, de Cuntima ou Saré Bacar, no norte, a Cameconde, no sul, de Varela e Catió, no oeste, a Buruntuma, no leste, com excepção de Madina do Boé, como já se referiu.

Concretamente, traduzia-se na existência de 225 guarnições militares, sendo 72 ocupadas exclusivamente por tropas do Exército e Armada, 82 por tropas do Exército e Armada e unidades de milícias e 71 só por unidades de milícias.

Em grande parte imposto por uma progressiva adaptação do esforço militar à manobra sócio-económica que vinha sendo conduzida na Guiné, algumas vezes sacrificando a devida ponderação de todos os factores ao imperativo de execução urgente, este dispositivo apresentava inconvenientes de dispersão e vulnerabilidade que se tornava necessário corrigir. Por isso haviam sido iniciados estudos para a sua remodelação, com vista a um melhor ajustamento à fase em curso dos programas de promoção sócio-económica e a uma reorientação da actividade operacional das Forças Nacionais.

4 — O material de que dispunham as Forças Nacionais era, em alguns casos, qualitativamente inferior ao empregado pelo inimigo: referem-se, por exemplo, os materiais de artilharia, os morteiros e as temíveis armas que são os R.P.G. 2 e 7.56

Os meios aéreos também não eram os mais adequados ao tipo de apoio que se pretendia e de que se carecia, sobretudo depois do aparecimento dos foguetes Strella.57

VI. CONCLUSÕES

1 — Em paralelo com a guerra, e naturalmente sofrendo condicionamentos por ela postos, desenvolvia-se a vida política, económica e social da Guiné.

Embora sob a influência daqueles condicionamentos, que em maior ou menor grau, punham questões de segurança de pessoas e bens, ampliavam margens de incerteza nas previsões, criavam distorções nos mecanismos de gestão, afectavam relações sociais:

  • funcionavam os órgãos de governo próprio;

  • a rede administrativa cobria todo o território;

  • os órgãos de administração local exerciam as suas funções de gestão;

  • os serviços de saúde e de educação cumpriam as missões próprias;

  • as comunicações de transporte e de relação asseguravam os contactos entre localidades, permitiam os deslocamentos de pessoas e garantiam os circuitos de comercialização, no interior e para o exterior;

  • estavam em curso obras de fomento nos sectores da educação, saúde, vias de comunicação, agricultura e melhoramentos rurais e urbanos;

  • a produção agrícola satisfazia parte das necessidades da população;

  • cobravam-se impostos:

  • cumpria-se um orçamento.

De fins de Fevereiro a princípios de Abril realizara-se, pelo quinto ano consecutivo, o Congresso do Povo, nas suas fases regional e provincial, envolvendo a participação de alguns milhares de representantes da população e dezenas de reuniões em diversas localidades.

2 — A contribuição das Forças Armadas era vultosa e decisiva, incidindo praticamente sobre todos os sectores da vida da Província.

Militares, em regime de ocupação exclusiva ou em acumulação, ocupavam posições nos Serviços Provinciais, responsabilizavam-se pela assistência sanitária, exerciam funções docentes, empenhavam-se na execução de melhoramentos rurais e urbanos, auxiliaram a gestão das comunidades, executavam trabalhos de mão-de-obra especializada, criaram postos de trabalho, dinamizavam a economia, impulsionavam e enquadraram iniciativas nos mais diversos campos.

Tinham parte destacada e relevante na comunidade civil e eram elemento essencial da sua promoção e desenvolvimento.

3 — O Teatro de Operações da Guiné tinha as seguintes características principais, algumas das quais se não podiam encontrar nos Teatros de Operações de Angola ou de Moçambique:

  • Envolvimento por Estados, declarada e nitidamente, hostis, onde as forças inimigas dispunham de todo o apoio e de total liberdade de acção;

  • Extensa fronteira terrestre (700 km), aberta em toda a sua dimensão, dum extremo ao outro; da conjugação deste factor com o antecedente resultava, para o inimigo, facilidade de penetração no território da Guiné e de ataque às guarnições de fronteira e, para as Forças Nacionais, acrescida vulnerabilidade destas guarnições e dispersão de esforços na vigilância da faixa fronteiriça:

  • Reduzida superfície, que assim não punha ao inimigo, por isso e pelo apoio recebido nos países vizinhos, problemas de alongamento das suas linhas de comunicações, de dispersão de efectivos e de complexidades logísticas:

  • Dos pontos de vista de comando, de manobra e de apoio logístico, com centralização em Bissau, compartimentação, por obstáculos naturais, em 3 zonas:

    • a norte do Rio Geba

    • entre os Rios Geba e Corubal

    • a sul destes dois Rios

Esta compartimentação do Teatro de Operações por rios de envergadura, nenhum deles com pontes entre as suas margens e com a navegabilidade condicionada, em absoluto, pelo regime de marés, implicava fortes limitações à acção de comando, ao deslocamento de forças e ao apoio logístico, e lançava um pesado ónus sobre os meios navais e aéreos;

  • Clima e terreno não favoráveis às operações, em particular na metade ocidental do território, com as suas quase impenetráveis zonas de mangal e densas florestas tropicais, e com as marés a penetrarem diariamente pela terra dentro, alagando as terras e causando nos rios desníveis de metros:

  • Um mosaico de etnias, mais de trinta, diferenciadas entre si, com características e organizações específicas, seus problemas, seus anseios próprios e suas rivalidades.

Por outro lado, o empenhamento das unidades militares na manobra sócio-económica conduzira a uma inconveniente mistura da tropa com a população, que manifestava toda a sua acuidade quando de acções por parte do inimigo.

4 — O inimigo evoluíra progressiva e significativamente no seu conceito geral de manobra (concentração de forças sobre objectivos seleccionados ao longo da fronteira, procurando conjugar concentrações maciças de fogos com acções de isolamento dos objectivos atacados) e no seu potencial militar, tanto humano como material, neste dispondo até de superioridade em algumas armas.

O inimigo punha, portanto, uma ameaça séria sobre as guarnições de fronteira, em particular daquelas com mais difícil acesso pelas Forças Nacionais, para reforço e reabastecimento.

5 — As características naturais do Teatro de Operações, a evolução do inimigo e a sua liberdade de acção do outro lado da fronteira aliadas a, por parte das Forças Nacionais, reduzidas forças de intervenção e dificuldades de manobra de meios, limitaram em grau considerável a capacidade de iniciativa do Comando das Forças Armadas Portuguesas.

A necessidade de manter forças disponíveis para o eventual reforço, em tempo oportuno, dum objectivo seleccionado pelo inimigo constituía uma preocupação permanente do Comando, aliás traduzida em progressivo aumento das forças em reserva, e um condicionamento pesado da sua liberdade de manobra. Por outro lado, porém, o empenhamento de forças de intervenção nos sectores em que o inimigo decidira fazer o esforço, aumentava a probabilidade de actuação contra forças que, como norma, se esvaíam rapidamente e contribuía assim para a desarticulação do sistema adverso.

6 — A listagem das características principais do Teatro de Operações da Guiné, feita no n.º 3, só por si conduz naturalmente à noção da grande dificuldade duma acção militar em tal teatro de operações.

Se a essa dificuldade se adicionarem as que resultavam de se defrontar um inimigo com as características que foram referidas, facilmente se deduz a gravidade da situação militar que se vivia na Guiné no 1.º trimestre de 1974.

Era uma situação extremamente exigente para os Comandos e também extremamente exigente e muito dura para as tropas, a requerer em curto prazo a adopção de medidas de âmbito local e no plano da Defesa Nacional, umas em planeamento ou já planeadas e outras em vias de execução.

7 — No campo rigoroso do concreto, nega-se frontalmente a veracidade de algumas afirmações que sobre a Guiné têm sido produzidas.

Nomeadamente, aponta-se como rotundamente falso que, no 1.º trimestre de 74, dois terços do território estivessem sob o domínio do PAIGC; que as tropas portuguesas estivessem entrincheiradas em algumas cidades e algumas bases; que as Forças Nacionais estivessem acantonadas na capital e em mais dois ou três pontos.

Pelo contrário, afirma-se sem receio de desmentido, que as tropas portuguesas tinham acesso a quase todos os pontos do território, com medidas de segurança de intensidade variável; que os comboios auto, de reabastecimento, circulavam pelas estradas; as tropas se movimentavam em campo aberto, com maiores ou menores dificuldades, efectivos mais ou menos numerosos, apoios tácticos mais ou menos desenvolvidos; que o dispositivo militar cobria todo o território; que as Forças Nacionais ocupavam, com guarnições militares ou de milícias, 225 localidades.

8 — A guerra estava militarmente ganha? Evidentemente que não. Nunca ninguém o disse, nem pretendeu fazê-lo crer.

A guerra, na Guiné, «estava perdida no campo militar», como se tem afirmado com alguma frequência?

Estávamos, na Guiné. «à beira dum desonroso colapso militar», como também se declarou?

A situação na Guiné, no 1.º trimestre de 1974, concedia base àquela primeira afirmação ou apontava irremediavelmente para a segunda?

Estas «notas», no rigor da sua objectividade, poderão ser, julga-se, elemento de informação útil para quem procure obter resposta a estas questões.

Certo é que as guerras sempre foram e continuarão a ser lutas de vontades… e não só das vontades dos combatentes.

ANGOLA

Gen. Joaquim da Luz Cunha

I. INTRODUÇÃO

Para fazermos a apreciação da situação militar em Angola, no 1.º trimestre de 1974, iremos analisar muito sumariamente a situação geral, externa e interna, em que se desenvolvia a luta em Angola. Veremos em seguida em que posição se encontrava a subversão naquele período (1.º trimestre de 1974) e procuraremos depois tirar algumas conclusões quanto às perspectivas que, a curto prazo, se poderiam admitir para a evolução dessa situação.

Na análise que apresentamos procuraremos ser objectivos, de acordo, com a posição em que, efectivamente, então, nos encontrávamos, vista no seu conjunto, ao nível do mais alto escalão militar. Não seremos nem optimistas nem pessimistas; tentaremos apenas tirar conclusões lógicas da análise dos actos, pelos métodos usuais de apreciação duma situação militar.

II. SITUAÇÃO GERAL

Externa

Grande número de países e diversas organizações internacionais manifestavam-se por diversas formas, contra a luta que movíamos em Angola aos movimentos terroristas que a atacavam.

Salientavam-se nessa atitude muitos países africanos e asiáticos, em especial os de regime ou tendência comunista, mas alinhavam também contra nós vários países ocidentais.

Como consequência deste ambiente, deparávamos com as maiores dificuldades quando pretendíamos adquirir os armamentos e equipamentos que não fabricávamos, e que nos eram necessários.

Ao contrário do que com frequência se dizia em certos meios de informação, os Estados Unidos da América, a quem especialmente interessaria que os territórios portugueses do ultramar, dada a sua importância geo-estratégica e económica, não passassem para a órbita do bloco oriental, não nos cediam nem permitiam a venda de qualquer tipo de material que fosse considerado de guerra. Existia portanto, de grande número de países, hostilidade generalizada contra a luta de defesa que travávamos sem que para isso se encontrasse da parte da maioria nem fundamento lógico nem conhecimento objectivo da realidade, mas apenas interesses, oportunismos ou cedências perante os clamores insistentes que se dirigiam contra nós, embora destituídos de verdade ou consistência.

A ONU também nos hostilizou frequentes vezes, designadamente por meio de pressões na OUA (Organização da Unidade Africana) para que fosse coordenada a acção entre os diversos «movimentos de libertação», como lhes chamava, e aceitou até a presença de observadores desses movimentos na Assembleia Geral.

A OUA salientou-se desde sempre pelos esforços que desenvolveu para obter a coligação ou, pelo menos, a coordenação dos movimentos terroristas. Assim, depois de instantes tentativas, conseguiu, em Dezembro de 1972, após laboriosas e prementes diligências, que fosse formalmente anunciada uma coligação entre o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), com a constituição de órgãos conjuntos para a direcção superior das acções militares e políticas desses movimentos. Naturalmente esta notícia causou alguma preocupação nos responsáveis pela luta contra a subversão, embora se soubesse que a anunciada coligação só fora obtida por fortes e prolongadas pressões internacionais e que fora facilitada pela séria crise com que o MPLA então já se debatia, mas admitia-se que muito provavelmente essa coligação não viria a concretizar-se devido aos profundos antagonismos há muito existentes entre os dois movimentos. Assim, de facto, veio a suceder.

Entre as várias atitudes assumidas contra nós por organismos internacionais, é curioso referir a da Conferência Pan-Americana das Igrejas que chegou a propor à ONU que os governos de Portugal, em África, e de outros países da África Austral, fossem considerados «terroristas».

Ao contrário do que se passava connosco, os chamados movimentos de libertação que atacavam Angola recebiam como donativos todos os apoios de que necessitavam, de países do bloco oriental e também de muitos ocidentais, assim como de várias organizações internacionais, quer em dinheiro, quer em armamento, quer ainda sob a forma de facilidades de especialização e fornecimento de técnicos e conselheiros. Isto é, os movimentos subversivos desencadearam o ataque aos territórios ultramarinos portugueses, cometendo as maiores violências contra as suas populações, brancas e de cor, as quais se defenderam com inexcedível coragem e o apoio dos magros contingentes das forças armadas então lá existentes e que só depois foram sendo progressivamente reforçados. Nesta luta estavam em jogo, como era evidente, para além da pretensa «libertação» desses territórios, fortíssimos interesses políticos e económicos internacionais. No entanto, eram os atacantes que recebiam apoio, material e político, quer do bloco oriental, quer de muitos dos países do próprio bloco ocidental, a que estávamos ligados, enquanto a nós nos era recusada essa ajuda internacional, além de sermos ainda severamente criticados e condenados pela opinião pública mundial.

Deve todavia reconhecer-se que foi muito precária a acção que desenvolvemos nos campos político e psicológico, interna e externamente, para lutar contra essa situação. Nem sequer se davam, com a eficácia e amplitude necessárias, os esclarecimentos do que efectivamente estava a passar-se nem se procedia, com a iniciativa e o vigor indispensáveis, às negociações que seriam oportunas.

Antes, e em especial depois, do 25 de Abril de 1974, falou-se com grande frequência da impossibilidade de decidir a guerra do ultramar pela via militar, para se acentuar que isso só seria possível — dizia-se — através duma solução política. A verdade é que a guerra, em especial a subversiva, se trava «simultaneamente» e de forma «coordenada» nos sectores militar, político, económico-social, internacional e psicológico. Tem de reconhecer-se que entre nós, ao nível mais elevado, pouco mais se actuou, de facto, do que no âmbito militar e, de forma pouco frutuosa, no internacional. Certos aspectos, designadamente o psicológico (interna e externamente), foram quase completamente ignorados, apesar de alguns chefes militares terem, desde sempre, resistentemente acentuado ao Governo a sua extraordinária importância.

Se a acção militar era indispensável para conter ou anular os ataques armados que nos eram dirigidos, não podia também deixar de se actuar «coordenadamente» em todos os outros campos mencionados, procurando assim fazer o melhor emprego de todos os meios de que pudéssemos dispor nesses vários sectores. Ora a verdade é que não só pouco se fez activamente ao mais alto nível nos outros campos, para além do militar, mas também não houve entre eles a conveniente coordenação. Isso correspondeu a desperdiçar a utilização de alguns meios da maior importância na luta contra a subversão ou a utilizá-los insuficientemente, o que foi particularmente grave num país de escassos recursos como o nosso. Foi uma falha fundamental na condução da guerra ao mais alto nível.

Seria no entanto igualmente errado procurar a solução da guerra apenas por via política. A inexistência de forças armadas capazes de conterem ou rechaçarem os ataques das forças subversivas, reduziria a chamada solução política à nossa inteira submissão aos desígnios desses movimentos e de quem os apoiou.

A acção simultânea e devidamente coordenada nos vários campos de acção, como se disse, é a única forma de conduzir a luta contra a subversão, para se procurarem salvaguardar os legítimos direitos e interesses nacionais, e em especial os das populações, fosse qual fosse o tipo de solução para que nos encaminhássemos.

Para concluirmos esta rápida apreciação da situação geral externa, importa caracterizar a atitude dos países limítrofes de Angola.

A República Popular do Congo, com fronteira com Cabinda, acolhia o MPLA, dava-lhe o maior apoio possível e, por seu intermédio, chegava a esse movimento grande parte do apoio proveniente do exterior.

A República do Zaire, com fronteira com o sul de Cabinda e com o norte e leste de Angola, era a grande base da FNLA. Inicialmente apoiou também o MPLA mas depois retirou-lhe esse apoio e proibiu-lhe mesmo todas as actividades, incluindo a circulação no seu território, o que levou aquele movimento a abrir, em 1967, a Frente Leste58, a partir da Zâmbia, que lhe deu acolhimento e ajuda.

A sul de Angola, os territórios sob controle da República da África do Sul. em especial a Namíbia, não apoiavam qualquer dos movimentos que nos atacaram; no entanto, e dada a agitação latente que neles se verificava, alguns elementos subversivos conseguiam por vezes infiltrar-se em Angola através da fronteira sul.

Na República Popular do Congo faziam sentir-se as influências da URSS e da China, bem como da França. As suas relações com a República do Zaire eram tensas ou instáveis e a sua situação política interna precária.

A República do Zaire, um dos maiores e mais ricos países da África Austral, fazia certo jogo duplo com o Ocidente (em especial os EUA) e o Oriente (China e URSS) e de ambos os lados obtinha auxílio. No entanto, também a sua situação interna era muito vulnerável (problemas com o grupo étnico dos macongos, guerrilha no Calemie e situação insegura dos catangueses, além da grave crise económica que estava a acentuar-se rapidamente).

A Zâmbia é também um país rico, mas enfrentava igualmente problemas internos com alguns grupos populacionais. O apoio que concedia aos elementos da SWAPO, que actuavam contra o antigo Sudoeste africano, hoje Namíbia, levou a República da África do Sul a realizar acções na zona fronteira, o que conduziu a Zâmbia a moderar esse apoio.

Ao sul de Angola, nos territórios ligados à República da África do Sul a que esta concedeu autogoverno (bantustões), a situação apresentava também forte instabilidade que, por vezes, contagiava a região fronteira de Angola, em especial a zona dos cuanhamas.

Interna

O imenso esforço que o país vinha desenvolvendo desde 1961, na luta contra os ataques dos movimentos subversivos, era extremamente desgastante. Não só as verbas necessárias assumiam valores muito consideráveis, como a obtenção dos meios materiais para essa luta exigia penosas diligências, pelas grandes dificuldades que mais ou menos por toda a parte se nos deparavam. A tudo isso porém se sobrepunham os enormes sacrifícios a que eram submetidos os que tomavam parte na luta.

Verificavam-se em Angola graves deficiências de meios materiais nas Forças Armadas devidas quer às dificuldades que nos eram opostas à sua obtenção, quer às insuficiências das dotações, quer ainda aos esquemas burocráticos de procedimento, que assumiam por vezes formas inauditas. Do muito que a este respeito poderia dizer-se, basta referir que havia já alguns anos se instituíra o sistema de pagamentos diferidos, que consistia em escalonar por vários anos o pagamento do que se adquiria em cada ano. Isto poderia justificar-se para artigos de elevado custo e longa duração, que não se compram todos os anos, como navios, aviões, etc., mas era completamente inaceitável a aplicação que se fez desta modalidade até para obtenção de artigos de consumo correntes, que anualmente tinham de adquirir-se. Tal procedimento, agravado com os atrasos que se verificavam nos pagamentos, criou-nos junto dos fornecedores uma situação pouco prestigiante e deu origem a que os preços das compras subissem de forma considerável, atingindo em muitos casos mais de 20 a 30% do preço normal, o que era verdadeiramente ruinoso.

Concretamente, podemos referir, por exemplo, que por vezes só dispúnhamos de menos de metade das viaturas que devíamos ter, segundo quadros orgânicos já de si modestos em dotações de material. Calcular-se-ão os inconvenientes que daí resultavam para a actividade, quer operacional, quer logística, e a sobrecarga de esforço que acarretava para os serviços de manutenção do material.

Na Força Aérea, além de dispormos de alguns helicópteros, embora em número insuficiente e com falta de tripulações, o restante material era como que um mostruário de modelos mais ou menos obsoletos e não tínhamos quaisquer aviões que pudessem opor-se a eventuais acções que, contra nós, fossem exercidas por meios aéreos modernos, de que dispunha, designadamente, a República do Zaire. Só a extraordinária dedicação e competência do pessoal conseguia ir suprindo muitas destas deficiências.

Havia no entanto projectos em adiantado estado e mesmo diligências em curso para resolver alguns destes problemas de material.

No pessoal também se verificavam grandes dificuldades. O contingente metropolitano era utilizado na sua totalidade e estava já a recorrer-se, logicamente, em escala cada vez mais importante, e com resultados satisfatórios, aos contingentes dos territórios ultramarinos. Em Angola, a «miscigenação» dos efectivos atingia valores da ordem dos 50%. Deve salientar-se que nas Forças Armadas de Angola, nunca se constituíram unidades só de brancos ou só de pretos. A utilização do pessoal de cor fazia-se sempre em unidades miscigenadas.

Duma maneira geral, o nível de instrução do pessoal era deficiente, devido à fadiga do pessoal instrutor (alternava as comissões no ultramar com as responsabilidades da instrução), ao seu exíguo número e a faltas de material de instrução. Assim, as unidades que chegavam a Angola, e que deviam ser utilizadas em operações activas mais intensas, eram ali previamente submetidas a uma curta mas aturada instrução, ministrada com grande sacrifício e dificuldade, mas que efectivamente mostrou ser eficaz.

Foi no entanto o pessoal do quadro permanente que mais duramente suportou o esforço da luta no ultramar, em comissões sucessivas que, em certos casos chegaram, a ser espaçadas apenas de alguns meses. Muitos Oficiais iam já na 5.ª comissão e alguns deles encontravam-se verdadeiramente arrasados com a tremenda provação a que vinham sendo submetidos. A gravidade deste problema ia-se acentuando progressivamente sem que se lhe tivesse ainda dado solução conveniente. Apesar de se terem já adoptado algumas disposições para facilitar a admissão na Academia Militar dos que se tivessem distinguido na sua prestação normal de serviço no ultramar, a verdade é que o recrutamento regular para a Academia continuava, há já alguns anos, a ser reduzido, não bastando sequer para renovar, e ainda menos para ampliar, o quadro permanente. A carreira militar não era atraente, quer pelos tremendos esforços e perigos a que estavam submetidos os que a seguiam, quer pela precariedade das condições materiais que proporcionava, quer ainda porque nunca se deu ao país, em toda a sua dimensão, a verdadeira imagem do militar para que se lhe prestasse a justiça devida e fosse dignificado como merecia.

Entre todos os problemas com que se debatiam as Forças Armadas — e tantos eram — o mais grave consistia sem dúvida na falta de pessoal do quadro permanente. Este problema crucial foi por várias vezes e com a maior nitidez posto ao Governo por alguns chefes militares, em especial junto do Conselho Superior da Defesa Nacional, mas nunca foram tomadas medidas de fundo para o resolver de forma satisfatória, o que, deve acentuar-se, não era fácil. Numa dessas vezes, o então Ministro do Exército, solicitado pelo Presidente do Conselho declarou que o assunto estava em estudo e se preparavam os respectivos diplomas legais. Parece todavia que tais estudos só depois disso se terão iniciado e vieram afinal a traduzir-se nos deploráveis decretos-leis de 1973! Nestes diplomas desrespeitavam-se direitos legítimos, já adquiridos por oficiais de carreira, dando origem a inúmeras situações chocantes, criando condições que ainda mais desencorajavam a concorrência normal à Academia e reduzindo e desqualificando o nível efectivo dos cursos militares que ali se realizavam.

A carência de pessoal do quadro permanente levou, por outro lado, à utilização excessiva de pessoal miliciano em funções para que não podia estar normalmente preparado. A grande maioria das companhias eram comandadas por capitães milicianos que tinham assim de arcar com todas as variadas e complexas funções exigidas por essas unidades: operacionais, logísticas, administrativas, disciplinares.

Não deve ainda deixar de apontar-se que entre os elementos do enorme contingente que anualmente era chamado às fileiras, apareciam alguns politicamente preparados para exercerem acção corrosiva e desagregadora. Todavia os efeitos da sua actividade, embora importantes, não tinham ainda assumido forma alarmante. Exigiam porém um trabalho de neutralização bem planeado e intenso mas que só parcelarmente era feito, e apenas no quadro militar.

Apesar de todas as dificuldades existentes e que acabam de ser apenas afloradas, a capacidade operacional das nossas forças ia-se mantendo satisfatória, mercê da inexcedível dedicação e da coesão e espírito de disciplina e de missão existentes nas Forças Armadas de Angola.

Também em Angola não havia, nos primeiros anos da guerra, coordenação suficientemente estreita entre a acção militar e a que se desenvolvia nos outros campos, como por exemplo no económico-social e no psicológico. Isto resultava de não haver um responsável único pelo conjunto de acções a desenvolver nos vários sectores e assim cada um ser levado a ocupar-se exclusivamente com o que no seu sector lhe cabia, esquecido de que tudo deveria ser coordenado ou integrado num plano global, para se conseguir o melhor rendimento dos meios utilizáveis.

A esta dificuldade se procurou obviar com o estabelecimento do que se chamou a «Estrutura da Contra-Subversão», através da qual se criaram, aos vários níveis, órgãos conjuntos (civis-militares) de que faziam parte os correspondentes responsáveis. Nesses órgãos se razia a indispensável coordenação das acções que se desenvolviam nos vários sectores de actuação. Deve acentuar-se que, em especial nos últimos tempos antes do 25 de Abril de 1974, se conseguiu que a colaboração assim estabelecida funcionasse de forma eficaz, graças também ao excelente entendimento pessoal que existia entre os que faziam parte desses órgãos conjuntos. Deste modo se estabeleceu, por exemplo, um vasto plano de estradas que tinha em conta, simultaneamente, os interesses económico-sociais e os interesses da defesa militar de Angola. Foram também muito positivos os trabalhos de reinstalação e reintegração de vastos grupos populacionais que, cada vez com maior frequência, fugiam ao domínio das forças subversivas e se acolhiam à nossa protecção. Além do acolhimento e assistência imediata que se lhes proporcionava, era necessário facultar-lhes a possibilidade de reinstalação em condições de retomarem a sua vida e o seu trabalho normais e, assim, poderem efectivamente ser recuperados para a comunidade angolana. Neste sentido se desenvolveram trabalhos de muito interesse e amplitude, que ultimamente estavam em curso, em ligação com as autoridades civis, a sul dos Dembos, e que iriam sendo prosseguidos para norte, à medida que as necessidades o fossem justificando.

Menos frutuosos foram os esforços de coordenação da acção psicológica, não só por ser actividade mais complexa, mas também pela dispersão dos órgãos civis que nela deveriam intervir, o que acrescia portanto as dificuldades de coordenação. Nas Forças Armadas funcionava porém, de forma que pode considerar-se muito aceitável, um serviço de acção psicológica (criado no Exército em 1965) que actuava sobre as nossas tropas, sobre as forças que nos atacavam e sobre as populações das áreas onde se desenvolviam acções militares.

Esta colaboração entre os órgãos civis e militares contribuiu de modo muito significativo para a nítida melhoria da situação que se verificava.

Em Angola vivia-se, especialmente nos últimos anos, em ambiente de grande progresso económico e cada vez se alargavam mais as suas perspectivas de desenvolvimento.

As iniciativas e os grandes empreendimentos iam-se multiplicando, quer da parte de nacionais, quer de estrangeiros, o que reflectia a confiança que se ia acentuando no seu futuro.

As relações entre brancos e negros também se mantinham normais, embora não deixasse de surgir por vezes algum incidente esporádico que se procurava prontamente corrigir. Alguns problemas graves e complexos subsistiam, porém, como o das terras, mas que estavam a ser cuidadosamente estudados, na busca de soluções equilibradas que pudessem ir sendo postas em vigor. As condições de vida dos negros iam também melhorando, embora com alguma lentidão, e generalizava-se entre eles o descrédito pelos movimentos subversivos que não só não cumpriam as vastas promessas que haviam feito como até muitas vezes exerciam as mais arbitrárias violências sobre as populações. Por isso, as que se achavam sob o domínio dos movimentos subversivos cada vez em maior número procuravam acolher-se à protecção das nossas Forças Armadas.

Estes movimentos tinham portanto pouca aceitação nas populações e constituíam fundamentalmente grupos ao serviço dos interesses dos grandes blocos internacionais, por vezes através dos países limítrofes de Angola que lhes davam apoio. Chamar-lhes movimentos libertadores ou nacionalistas é pois flagrante deformação da realidade.

Era neste ambiente, como em linhas muito gerais ficou esboçado, que em Angola se desenvolvia a reacção militar aos ataques dos movimentos subversivos.

III. SITUAÇÃO DA SUBVERSÃO

A agressão contra Angola desenvolveu-se inicialmente só a norte, através da fronteira com a República do Zaire (Frente Norte). Assim se manteve confinada numa área que inclui a zona dos Dembos até que, em 1966, o MPLA, devido aos seus desentendimentos, que se vinham agravando, com a FNLA, foi impedido de utilizar o território zairense. Então, com o apoio da Zâmbia, passou a desenvolver os principais ataques contra Angola a partir deste país (Frente Leste). A FNLA também exercia algumas acções, embora de pequena importância, na parte norte da Frente Leste, a partir do território do Catanga (Shaba), na República do Zaire. Da mesma forma, o MPLA manteve na parte sul da Frente Norte alguma actividade, embora lutasse com grandes dificuldades de reabastecimento e recompletamento porque, como se disse, lhe era vedada a utilização do território da República do Zaire.

A UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), movimento de pequeno vulto mas com certa eficácia, actuava numa zona a sudoeste do Luso, portanto na Frente Leste, onde parte da etnia dominante na área de actuação lhe era favorável. Oficialmente não tinha apoio da Zâmbia mas de facto ali o obtinha, clandestinamente ou não. Recebia, além disso, ajudas de meios de várias outras origens, designadamente da República Popular da China.

É importante salientar desde já a violenta hostilidade que existia entre os três movimentos. Lutas de ambição e predomínio, agravadas por ressentimentos anteriores, aumentavam sem cessar o fosso que os separava uns dos outros.

Durante certo período, a UNITA quase não teve recontros com as nossas tropas, mas batia-se tenazmente com o MPLA e a FNLA, no leste. No norte, era igualmente violenta a luta entre a FNLA e o MPLA.

Naturalmente. a criação da Frente Leste obrigou a deslocar para lá forças nossas e, com o desenvolvimento que as acções a certa altura aí tomaram, passou mesmo o nosso esforço militar predominante a exercer-se no leste.

Em Cabinda só actuava ultimamente o MPLA, a partir da República Popular do Congo, mas em geral de forma esporádica e pouco consistente.

Em 1972, acentuou-se ao sul, no distrito do Cunene, em especial na região dos cuanhamas um mal-estar que já se pressentia e que era atribuído à natureza aguerrida dessa etnia e ao contágio da inquietação que se infiltrava através da Namíbia. Isto é, esboçava-se uma situação pré-insurreccional, em que portanto não havia subversão violenta mas que, devidamente explorada por elementos subversivos e avolumada, poderia transformar-se em insurreição declarada, violenta.

Nas outras regiões de Angola não havia actividade subversiva e apenas num ou noutro ponto se detectavam por vezes tentativas isoladas de aliciamento para agitação político-social, de resto sem resultados assinaláveis. Apenas como ordem de grandeza, poderemos dizer que antes da desarticulação do MPLA, as áreas onde havia acções de guerrilha correspondiam a uns 20% do território. Nos outros 80% havia perfeita calma, salvo qualquer incidente extremamente raro. As áreas de guerrilha localizavam-se na Frente Leste, junto da fronteira com a Zâmbia e numa pequena parte da fronteira com a República do Zaire, e na Frente Norte, a partir da fronteira com a República do Zaire. Estas áreas não estavam na posse dos movimentos subversivos. Eles exerciam aí as suas acções e eram combatidos pelas nossas forças que lá estavam localizadas ou que eram especialmente atribuídas para as operações em curso.

Era esta, a traços muito gerais, a situação da subversão em Angola, em meados de 1972.

A acção persistente e valorosa das Forças Nacionais, de acordo com um planeamento cuidadosamente estabelecido, a coordenação eficaz que se ia conseguindo dos esforços militar e económico-social, a intensificação e oportunidade da acção psicológica interna desenvolvida, a fadiga e desilusão das populações que eram oprimidas pelos movimentos subversivos, foram produzindo os seus frutos de forma cada vez mais marcada. Assim, no leste, o MPLA, que era o grupo mais importante nessa área, foi-se desmoronando, de tal forma que em 1973 se viu forçado a retirar a maior parte dos seus elementos para a Zâmbia e aí se verificaram cisões, dissidências e até tentativas de atentados contra alguns dos seus chefes. Também no norte, devido aos esforços sistemáticos das nossas forças, o efectivo do MPLA foi quase totalmente reduzido, o que até chegou a criar-nos problemas devido à brusca necessidade, que por isso surgiu, de prestarmos assistência a grande número de elementos da população que aproveitaram para fugirem ao domínio do MPLA e acolherem-se à nossa protecção. A importância da redução das forças do MPLA no norte foi ainda muito aumentada pelo facto de que elas constituíam ameaça, devido à sua localização, para o importante itinerário que, de Luanda, segue para nordeste (Carmona) — estrada do café — e poderiam mesmo vir a fazer perigar a segurança do que se dirige para sueste ( Salazar). Além disso, essas forças também podiam estabelecer contactos, com certa facilidade, através de mensageiros, com elementos da periferia de Luanda e sobre eles exercerem aliciamento político.

Com o desmantelamento do MPLA e as cisões que nele ocorreram, começaram a estabelecer-se diligências entre uma das suas facções e os outros movimentos, com a finalidade de se coligarem ou mesmo de se fundirem. A gravíssima crise que este movimento atravessava reflectia-se na sua incapacidade de actuação consistente. Foi nesta altura que o MPLA, para procurar manter algum prestígio, retomou a actividade contra Cabinda, a partir da vizinha República Popular do Congo, através de pequenas acções, de curto alcance.

A UNITA, em face do colapso do MPLA no leste, decidiu reactivar, no princípio de 1974, as suas acções contra nós, na sua zona de acção habitual, por ter considerado que tinha então o campo mais liberto para actuar e marcar assim, destacadamente, a sua posição, e talvez por ter receado que as forças portuguesas, agora mais disponíveis devido à desarticulação do MPLA, pudessem concentrar a sua acção contra ela, pelo que decidiu antecipar-se. Foi imediatamente contra-atacada pelas forças nacionais que, em breve, começaram a colher resultados significativos, não só em baixas, prisioneiros e apreensões de material, como também em apresentações de elementos da população que fugiram à opressão daquele movimento.

A situação pré-insurreccional que causava algumas preocupações no distrito do Cunene foi rapidamente neutralizada em 1973, quer devido ao aumento a que se procedeu dos nossos efectivos militares na área, podendo assim estabelecer-se mais frequentes e úteis contactos com os habitantes, quer por oportunas acções exercidas no campo económico-social, estreitamente coordenadas com os militares, o que permitiu ir satisfazendo em bom ritmo alguns anseios legítimos das populações, e que eram as causas predominantes das tensões que existiam, muito mais do que a apontada agressividade da etnia local. Desta forma se conseguiu evitar, com simplicidade e muita economia, que uma situação pré-insurreccional se transformasse em insurreição aberta e se criasse mais uma frente de luta militar, com todos os gravíssimos inconvenientes que daí resultariam. Este caso pode considerar-se um modelo de actuação oportuna numa fase inicial da subversão (ainda não activa) com que se fez abortar, pela intervenção predominante das autoridades civis, uma situação que ameaçava degenerar perigosamente.

Tal como se havia acentuado, o esforço militar português no leste quando se deu o agravamento da situação subversiva nesta região, também ao verificar-se aqui o colapso do MPLA e ao concluir-se que a sua recuperação, se viesse a dar-se, seria difícil e demorada, foi possível transferir para o norte esse esforço, em 1973. Isso permitiu que se acentuasse a actividade já intensa que vínhamos desenvolvendo no norte contra a FNLA, numa operação sistemática e de envergadura destinada a reduzir esse movimento e a repeli-lo na direcção geral de sul para norte. Esta operação estava já a dar resultados consideráveis em baixas, guerrilheiros aprisionados ou apresentados, populações que cada vez em maior número se acolhiam à protecção portuguesa59, e que acusavam marcadamente os efeitos devastadores duma larga permanência na selva e das grandes privações sofridas. Pelo testemunho de apresentados e por documentos apreendidos, confirmava-se que era já grande a perturbação que estava a causar na FNLA a acção das forças nacionais. O recrudescimento das violências que exerciam sobre as populações, confirmava igualmente que se estava agravando a situação da FNLA.

Interessa acentuar que muitos dos elementos dos movimentos subversivos, assim como as populações que eles subjugavam, estavam cansados, física e psicologicamente, da guerra e descrentes dos seus resultados. É a «lassidão» provocada pela guerra subversiva. Em virtude da terrível dureza das condições de vida, a que eram submetidos os elementos da população que os movimentos subversivos subjugavam, das violências que com frequência exerciam sobre eles e ainda da descrença generalizada na grande maioria da população quanto às promessas que há muito eram feitas por aqueles movimentos, havia um divórcio, cada vez maior, entre a população e os movimentos subversivos.

Poderemos avançar, apenas como ordem de grandeza, que uns 5% da população estava subjugada pelos movimentos subversivos ou fortemente contaminada pela influência que estes exerciam sobre ela. Cerca de 20% apresentava ligeiros indícios de contaminação e os restantes 75% não estavam contaminados por essa influência nem davam crédito às intenções anunciadas pelos movimentos subversivos. Tinham por isso estes movimentos grande dificuldade em recompletar os seus efectivos, como o demonstra o recrutamento coercivo a que a FNLA, a certa altura recorreu, junto das populações da zona do Zaire fronteira com Angola, e que provocou inúmeras fugas, reacções e mal-estar.60

Os resultados da vasta operação em curso contra a FNLA eram portanto muito animadores e podia admitir-se que, talvez ainda no decurso de 1974, pudessem conseguir-se no norte, contra este movimento, efeitos semelhantes aos que se tinham obtido no leste, contra o MPLA.

Nos fins de 1973 surgiram notícias provenientes de origens tidas como boas de que seria de admitir a realização de golpes-de-mão de elementos especializados contra as instalações petrolíferas de Cabinda, ou de acções da FNLA, possivelmente com meios convencionais importantes, fornecidos pelo Zaire, contra Cabinda e contra o norte de Angola. Foram por isso, logo no princípio de 1974, tomadas rapidamente as disposições adequadas e que eram possíveis para enfrentar aquelas eventualidades, em especial em relação a Cabinda, dado o interesse económico-político que Cabinda apresentava. Além disso, também a sua diminuta extensão e o afastamento do resto de Angola a tornavam particularmente vulnerável a uma acção importante que contra ela fosse desencadeada, e que, se obtivesse êxito, provocaria consideráveis efeitos materiais e psicológicos.

Nada ocorreu que justificasse as notícias que tinham aparecido e o passar do tempo ia esvaziando a probabilidade de se darem os ataques a que elas se referiam, por se esbater o efeito de surpresa de que pretendiam rodear-se. Mantiveram-se porém sem abrandamento as disposições que haviam sido tomadas em virtude daquelas notícias.

Nas outras regiões de Angola, a vida económica, política e social continuava a decorrer em perfeita normalidade, salvo algum pequeno incidente ocasional que nos alertava contra qualquer eventual tentativa de actividade pré-insurreccional.

Este era o panorama que existia em Angola no 1.º trimestre de 1974 e é legítimo admitir que melhorasse ainda mais, de forma acentuada, a curto prazo.

IV. CONCLUSÃO

Pelo que, de forma necessariamente resumida, acaba de se relatar, verifica-se que as Forças Armadas de Angola continuavam a sofrer, no 1.º trimestre de 1974, de diversas dificuldades de meios materiais e de pessoal, algumas delas importantes e até graves.

Por outro lado, a prosperidade de Angola permitia-lhe que fosse assumindo, cada vez em mais larga escala, os encargos financeiros com a guerra no seu território, e a própria situação financeira ao nível do governo central era também desafogada, como se sabe.

O problema mais grave, por ser de mais difícil e demorada resolução, era o do quadro permanente.

Apesar de todas as deficiências que foram referidas, as Forças Armadas Nacionais não deixaram porém de cumprir com a maior dignidade, determinação e eficiência as missões que lhes eram atribuídas e que se traduziam nos resultados muito favoráveis que continuaram a obter-se.

O MPLA estava destroçado61 e não se previa a possibilidade da sua recomposição a curto prazo. A FNLA estava a sentir os efeitos do rigoroso e persistente ataque que contra ela desenvolvíamos e podia admitir-se que viesse a sofrer grave colapso talvez ainda no decurso de 1974. A UNITA tinha possibilidades militares muito reduzidas e estava já a ressentir-se seriamente do forte ataque desencadeado contra ela.

A população, em geral, não dava crédito aos movimentos subversivos e mostrava-se cada vez mais confiante na acção das Forças Armadas Nacionais.

A situação militar no 1.º trimestre de 1974 era-nos pois francamente favorável e, a menos que ocorresse qualquer circunstância extraordinária e imprevisível, não apresentava para nós motivos especiais de preocupação. Pelo contrário, era de prever que se verificasse uma melhoria ainda mais acentuada, a curto prazo.

Os grandes empreendimentos em que se lançavam nacionais e estrangeiros denotavam a confiança e a fé que se tinham consolidado nas perspectivas desta vasta e fecunda terra. A situação geral de Angola apresentava-se tão pujante que permitiria que pudessem ter realização os sonhos mais audaciosos que sobre ela se construíssem.

MOÇAMBIQUE

Gen. Kaúlza de Arriaga

I. ABERTURA

1 — A análise da luta em Moçambique, travada na década de 1964 a 1974, implica, por um lado, o conhecimento pleno dos factores inerentes à própria luta e, por outro, a consciência correcta do ambiente que a enquadrava.

Assim, considerarei, em primeiro lugar, as causas da luta, a sua natureza, as teorias, estratégias e tácticas aplicadas e aplicáreis e o decorrer das operações.

Depois referirei as crenças, hábitos, tendências, estado de espírito e acção das populações, da Igreja, da Administração Civil e das Forças Armadas.

Finalmente, deduzirei uma conclusão.

2 — Durante o período em que fiz parte do Corpo Docente do Instituto de Altos Estudos Militares, dediquei-me ao estudo do Teatro de Operações de Moçambique.

Fui, depois, oito meses Comandante das suas Forças Terrestres e durante mais de três anos, exactamente quarenta meses, seu Comandante-Chefe.

Então, mantive constante contacto, com os meios internacionais, e, naturalmente, relações cerradas com o Governo e as Autoridades Militares de Lisboa: trabalhei intimamente com os Governos de Lourenço Marques e fiz uma condução da luta permanente e directa, processando-a no gabinete, nas salas de operações e, com grande frequência, no próprio campo de acção.

Tudo isto me permite analisar o caso de Moçambique com conhecimento de causa.

Tratá-lo-ei isentamente, de harmonia com os valores morais e éticos em que me fiz homem e militar e aplicando todas as minhas, poucas ou muitas, possibilidades intelectuais. E com serenidade, mas sem prejuízo do vigor de expressão que tamanha questão merece e exige.

II. AS CAUSAS DA LUTA

A causa profunda e primeira

3 — Um dos fenómenos que, após a II Grande Guerra, maior projecção tem tido nas relações entre as nações e mais tem incidido na vida dos povos e na actividade dos homens, é, indiscutivelmente, a confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

O primeiro, conduzido, de início, pela Rússia e pela China e, depois, apenas por aquela super-potência, tem assumido uma atitude ofensiva sistemática e impregnada de grande fanatismo. O Ocidente, orientado pelos Estados Unidos da América e pela Europa, embora baseado principalmente na extraordinária capacidade norte-americana, tem-se mantido em posição defensiva, de certo modo tímida e pouco motivada.

Paralelamente afirmou-se — mantendo ainda hoje validade significativa — a dissuasão clássico-nuclear. Esta vem conduzindo a que tal confrontação se processe através de uma estratégia indirecta no espaço e nos métodos e a uma política de pseudo-causas.

A estratégia indirecta no espaço concretiza-se não, ou limitadamente, na incidência sobre os próprios adversários, mas sim, ou sobretudo, na procura do controle de áreas importantes do Mundo que os afecte ou contribua para o seu isolamento. A estratégia indirecta nos métodos consiste na substituição da guerra clássico-nuclear pela acção psicológica e subversão, pelo terrorismo e guerrilha, pelo golpe de estado e revolução e pelas guerras limitadas.

Esta estratégia indirecta no espaço e nos métodos generalizou-se, manifestando-se em todas as áreas críticas do Mundo. não sob forma paroxística, mas constituindo um conjunto de conflitos locais e menores, coordenado e indefinido no tempo.

Na política de pseudo-causas, age-se por forma a que a confrontação referida, causa profunda e primeira dos conflitos locais e menores, seja minimizada ou mesmo camuflada perante problemas internos, como insuficiências, dificuldades e atritos, sempre existentes e artificialmente utilizados, ampliados e agudizados. E esta política tem-se mostrado eficaz na medida em que a necessidade de evitar perigosas escaladas guerreiras e o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros estados impõem — embora se conheça mas não se reconheça a causa autêntica — a consideração daqueles conflitos como de origem realmente interna e assim insusceptíveis de merecerem atitudes ou acções muito explícitas dos principais interessados.

4 — Entre as áreas importantes do Mundo cujo controle permite afectar e contribuir para o isolamento dos grandes adversários, distinguem-se, sem dúvida, a Ásia Marítima, a América do Sul, o Médio Oriente, a África do Norte e a África Austral.

A primeira, cinturão de contenção da China, teve grande significado antes da ruptura soviético-chinesa, deu origem às duas Chinas, conferiu importância capital ao Japão, processou mudanças políticas na Indonésia e está na base das guerras da Coreia e do Vietname.

A América do Sul, grande e naturalmente rica, constituindo o flanco Sul dos Estados Unidos da América, é teatro constante mas não presentemente o principal, da confrontação em causa.

O Médio Oriente e a África do Norte, por um lado, e a África Austral, por outro, também extensos e com zonas naturais muito ricas, constituindo a cobertura sul da Europa e dominando as comunicações marítimas no Índico, no Mediterrâneo e no Atlântico Sul, vêm sendo objectivo actual e prioritário na mesma confrontação. Daqui e em grande parte, os problemas políticos da Síria, Iraque, Jordânia, Líbia e Argélia, as alterações políticas no Egipto, os conflitos no Líbano e as guerras israelo-árabes. E daqui, igualmente em grande parte, as atitudes políticas da Tanzânia e da Zâmbia, as perturbações no Congo, os acontecimentos ocorridos em tempos no Congo Belga e os que agora se verificam no Zaire, as lutas que sustentámos na Guiné, Angola e Moçambique, a posterior descolonização destes territórios e a de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, e os problemas candentes da Rodésia e da República da África do Sul.

5 — Está assim definida a causa profunda e primeira da luta em Moçambique.

Esta luta mais não foi, e talvez mais não seja, do que um conflito local e menor na conquista da África Austral, objectivo presentemente prioritário na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

6 — Mas, sendo assim, é legítima a pergunta: porque não apoiou o Ocidente Portugal em África e até, pelo menos em certa medida, o hostilizou?

A verdade é que, a par de tal falta de apoio e hostilização explícitas, houve, também, muita simpatia e apoio implícitos.

Contudo e no seu somatório, a atitude e actuação ocidentais foram, em verdade, negativas em relação a Portugal ou, pelo menos, não suficientemente positivas. E, deste modo, a pergunta persiste: porquê?

Em primeiro lugar, na confrontação com o neo-imperialismo comunista o Ocidente, como referi, tem-se mantido em posição defensiva, tímida e pouco motivada. Isto porque uma opinião escrupulosa, sobretudo norte-americana mas também europeia, mal informada, perturbada por propaganda intensíssima e não poucas infiltrações, quer ter a certeza de estar na razão. Também, porque o superior nível de vida ocidental tem como preço o comodismo acentuado e a tendência para a dilação das questões difíceis. E, ainda, porque as preocupações internas dos países ocidentais tem conduzido à preterição de uma política a longo e médio prazos em favor do imediato.

Depois, os mesmos sentem o peso de um Terceiro Mundo, que reconhecem obcecado, mas cuja população imensa e em estado de sub-desenvolvimento lhes origina complexos, e cujas matérias-primas lhes são indispensáveis.

Finalmente, porque os países em causa nunca entenderam plenamente o caso português, nem acreditaram verdadeiramente nas nossas teses, nem aceitaram completamente a nossa argumentação.

Apesar de tais explicações, a verdade é que o que acabo de referir relativamente a Portugal se integra numa passividade ocidental de carácter, pelo menos, tendencialmente suicida.

Isto na medida em que o comunismo soviético obteve, com a chamada descolonização portuguesa, uma das suas mais significativas vitórias. Vitória tão grande que lhe permite encarar já a hipótese de, numa estratégia mais directa, cercar o coração da Europa. mediante uma ameaça brutal na fronteira da Alemanha Federal, mediante um crescente controle das comunicações marítimas e áreas no Mediterrâneo e no Oceano Atlântico, conseguido nomeadamente pela aquisição, permanente ou temporária e oportuna, de posições na África do Norte e nos arquipélagos de Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores, e mediante ainda o assentamento de pés, bem firme, nas Penínsulas Itálica e Ibérica.

É provável e desejável, que aqueles, que referi, como não entendendo o caso português, não acreditando nas nossas teses e não aceitando a nossa argumentação, comecem a aperceber-se de que afinal a razão estava connosco e que, a continuarem como até aqui, caminharão infalivelmente para a catástrofe.

Outras causas

7 — Não pode contrariar-se, à luz dos sãos princípios vigentes na actualidade, o desejo de qualquer povo de ser auto-governado, mesmo que de tal decorra para ele menor riqueza espiritual e material, menor nível de vida e maior infelicidade.

A isto veio juntar-se o anti-colonialismo, muitas vezes eminentemente justo, na medida em que um mau colonizador, isto é, um colonialista, em lugar de civilizar, explorava.

E estas circunstâncias foram transformadas em factores de tensão, altamente obsessivos, por interesses estranhos que nada tinham a ver com a auto-determinação ou com o acerto do colonizador ou as injustiças do colonialista.

Assim se formou a psicose terceiro-mundista de independência a todo o custo, sob qualquer fórmula, descuidando consequências.

Mas deve considerar-se que a auto-determinação, para ser autêntica, deveria pressupor um estádio político, económico e social dos povos que impedisse que, ao adquirirem, por via dessa própria auto-determinação, a independência, não caíssem logo sob o jugo de estrangeiros. O caso dos antigos Territórios Ultramarinos Portugueses é disso exemplo flagrante.

De qualquer maneira, a psicose referida foi também uma das causas, embora não a principal, da luta em Moçambique.

8 — Algumas pessoas nascidas na então Metrópole Portuguesa ou nos então Territórios Ultramarinos Portugueses, umas na observância dos interesses do comunismo internacional, outras apenas na ânsia de derrubarem o regime de Salazar e de Caetano, fizeram tudo o que lhes foi possível para que Portugal e as suas Forças Armadas fossem derrotados em África.

Foi uma atitude de desvario, de apostasia nacional. Nela desprezaram o País e os povos portugueses, quer europeus quer africanos e asiáticos, a sua História construída no suor e no sangue, o seu presente que poderia ser satisfatório e o seu futuro que poderia ser de riqueza e progresso. Nela contribuíram para a desastrosa situação que Portugal e os seus antigos Territórios Ultramarinos viveram recentemente, vivem e viverão ainda por muito tempo. Nela contribuíram para a ruptura do sistema de paridade e harmonia étnicas, em que Portugal era vanguarda no Mundo, e para a ruína de territórios prósperos ou em vias de sê-lo, como Angola e Moçambique. Nela assumiram responsabilidades indeléveis na morte e mutilação de bons e jovens portugueses, brancos, negros e mestiços, que cumpriam honestamente o seu dever militar, e nas centenas de milhares de mortos e milhões de destroçados moral e materialmente, fruto da descolonização.

E hoje, prisioneiros do seu erro, incapazes de um «mea culpa» histórico, limitam-se a uma defesa cega das suas posições e à tentativa de neutralização daqueles que, com seriedade lhes mostram o caminho errado que infelizmente seguiram.

A acção de tais portugueses foi igualmente uma das causas, se bem que factualmente menor, da luta em Moçambique.

9 — As teses ultramarinas portuguesas, na sua fórmula actualizada, já então vigente em Moçambique, não só respeitavam o passado português e estavam perfeitamente harmónicas com os conceitos sociais mais avançados, como são aquelas que terão de vigorar generalizadamente no grande futuro de um Mundo viável e harmonioso.

Contudo, havia e houve, quer no plano oficial quer no sector privado, alguns desvios a tais teses. Desvios que vinham sendo progressivamente corrigidos pelas Forças Armadas e pela parte boa da Administração Civil. Desvios que acabariam por desaparecer.

Mas a política das pseudo-causas, como sempre, aproveitou-se de tais desvios, ampliou-os, agudizou-os e fez deles uma bandeira que iludiu muitos portugueses e muitos estrangeiros.

Eis, ainda, uma outra causa menor da luta em Moçambique.

III. A NATUREZA DA LUTA EM MOÇAMBIQUE

A guerra destruidora, ofensiva e defensiva

10 — A guerra é na quase totalidade dos casos, por essência, destruidora.

Nela se procura impor uma vontade, destruindo, nos aspectos espirituais e materiais, o adversário. E, em particular, nela se destrói o que de mais sagrado existe — a vida humana.

Por isso a guerra é condenável. Outras fórmulas deveriam utilizar-se para solução dos diferendos entre os homens. E, embora muitas vezes ignoradas, elas existem efectivamente.

11 — Mas há, também, que distinguir a guerra ofensiva, a agressão violenta, que toma a iniciativa da destruição e que deliberadamente sacrifica vidas humanas, da guerra defensiva, do enfrentar da agressão, que só destrói para evitar a destruição e que só admite matar para não morrer.

Em relação à primeira, não parece poderem existir dúvidas sobre a sua ilegitimidade e sobre a atitude criminosa de quem a promove ou pratica.

A guerra defensiva, em contrário, reveste-se de legitimidade inteira e constitui dever maior, para os que sofrem a agressão, o nela participarem e agirem conscientemente e em total entrega.

A luta construtiva de Moçambique

12 — Na luta em Moçambique uma característica dominava, em antagonismo com o normal da guerra — a construção. Uma construção apontada ao futuro.

Na realidade, tal luta concretizava-se numa acção imensa de dignificação e promoção das populações e de valorização do território, tendo como objectivos fundamentais, procurados com coragem, tenacidade e fé, a plena paridade e harmonia étnicas, a produção crescente de riqueza e a sua justa distribuição.

Estava a conseguir-se, no plano da verdadeira civilização e no espaço de uma década, aquilo que, ao ritmo normal do progresso dos povos africanos, levaria pelo menos um século e que, após a descolonização, demorará muitíssimo mais tempo.

13 — Assim se poderiam ter elevado territórios, não nos anos 60, como alguns com ligeireza ou habilidosamente afirmam, nem nos anos 70, como ficou provado, mas talvez nos anos 80 ou 90, a um nível político, económico e social que lhes permitisse uma auto-determinação livre, consciente e autêntica no seu processamento e nas suas consequências. Isto em contraste com o que efectivamente sucedeu — o ignorar-se a vontade ou simples opinião dos povos e o seu encaminhamento forçado para a submissão a potências estrangeiras.

A guerra defensiva e humana de Moçambique

14 — Mas, em Moçambique, houve, também, grandes e intensas operações especificamente militares.

Elas eram, em última análise, defensivas ao enfrentarem a agressão de origem fundamentalmente externa e ao terem como finalidade impedir que o inimigo dificultasse a construção em curso. Isto é, a própria destruição tinha como objectivo defender e permitir a construção.

15 — Um outro aspecto não pode deixar de ser recordado. É o da grande humanidade com que as operações especificamente militares eram conduzidas e executadas.

Isto sem prejuízo do sofrimento geral e pontual que tais operações inevitavelmente trazem e sem prejuízo de uma ou outra acção abusiva que, quando conhecida e confirmada, logo foi punida ou enviada para juízo. Neste domínio e considerando todos os casos denunciados, de resto muitos dos quais falsos, o seu volume, face ao conjunto da actividade militar, foi mínimo e conferiu às Tropas Portuguesas de Moçambique o galardão de, pelo menos, se situarem entre as que melhor comportamento tiveram, no Mundo e em todas as épocas, perante as populações.

As operações especificamente militares eram moduladas pelo lema «convencer inteligências e conquistar corações» e, com frequência, foram previamente anunciadas as áreas e as datas onde iam ter lugar acções terrestres ou aéreas, na esperança de que delas se afastassem as populações. E nunca tive conhecimento de um apresentado ou prisioneiro ter sido menos bem tratado pelas Forças Armadas.

Não sei onde se tenha ido mais longe, e como se poderia fazê-lo, em matéria de protecção a civis e de acolhimento de apresentados e prisioneiros. Parece existirem algumas diferenças entre este procedimento e, por exemplo, os bombardeamentos da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, na II Grande Guerra, ou, continuando a exemplificar, o bombardeamento de Nova Lisboa e os massacres e fuzilamentos, a quente e a frio, que se perpetraram na Guiné, em Angola, em Moçambique e em Timor, no passado recente.

A natureza da luta em Moçambique

16 — Em síntese, a luta em Moçambique foi eminentemente construtiva e apontada ao futuro, teve um carácter defensivo e foi conduzida e executada pela forma mais humana.

Tal já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

E aqueles que nela participaram, particularmente quando o fizeram com dedicação e eficácia, são dignos do respeito e da gratidão da Pátria e dos seus povos e podem considerar-se orgulhosos de si mesmos.

IV. AS TEORIAS, ESTRATÉGIAS E TÁCTICAS APLICADAS E APLICÁVEIS E O DECORRER DAS OPERAÇÕES NA LUTA EM MOÇAMBIQUE

As áreas de luta

17 — Em 1970, a luta em Moçambique abrangia as seguintes áreas principais:

  1. A campanha de dignificação e promoção geral das populações.

  2. O ensino

  3. Os estudos e trabalhos de valorização do território.

  4. O aldeamento.

  5. A acção contra-subversiva, especialmente nos distritos do Niassa, Cabo Delgado e Tete.

Nas três primeiras áreas trabalhava-se intensamente e, se o sucesso nelas conseguido influenciava fortemente o êxito das duas últimas, também aquele sucesso estava dependente dos resultados do aldeamento e da contra-subversão.

É sobre o aldeamento e a contra-subversão, mais da responsabilidade do Comando-Chefe, que vou referir teorias, estratégias, tácticas, operações e seus resultados.

A teoria do aldeamento

18 — A promoção das populações só pode ter lugar em sociedades organizadas em cidades, vilas e aldeias e não quando predomina a vida nómada.

Em Moçambique existiam numerosas e magníficas cidades e mesmo as mais modestas foram talhadas com largueza, visando o futuro.

Porém, as vilas e aldeias moçambicanas eram limitadíssimas em quantidade e qualidade, verificando-se acentuado nomadismo.

Impunha-se, pois, um grande trabalho neste capítulo. Daqui a obra-padrão de Nangade. Daqui os aldeamentos.

Nangade era uma vila-tipo, uma vila que seria a primeira de uma série a estabelecer ao longo do rio Rovuma e que seria, também, o modelo de centenas e centenas de vilas a edificar, com o tempo, em todo o Moçambique. Nangade era uma vila planeada e em execução segundo parâmetros modernos. A sua construção começou pelas infraestruturas básicas — electricidade, água e esgotos —, seguiram-se-lhes os arruamentos e os edifícios de interesse comum e, depois, seguir-se-lhe-iam as habitações normalizadas.

Os aldeamentos constituíam a base da promoção do povo moçambicano. Tinham de ser implantados em grande quantidade e depressa, sacrificando-se inicialmente a qualidade à quantidade. Fizeram-se mais de mil, abrangendo aproximadamente um milhão de pessoas. Faltavam ainda uns quatro mil. Sobre aldeamentos reproduzo um texto que escrevi há algum tempo:

«Realmente aqueles que nos hostilizaram elegiam para os seus ataques físicos, procurando ferir e matar populações, e para os seus ataques propagandísticos pseudo-intelectuais, negando a verdade evidente, o aldeamento ou melhor os aldeamentos.

Estes, ao contrário do que dizia aquela propaganda que os considerava campos de concentração de estilo hitleriano, e diferindo das ideias que os julgaram de necessidade essencialmente militar e de duração efémera, eram pólos e fontes definitivos de civilização.

Em verdade constituíam mesmo a fórmula única de promoção rápida das populações sub-desenvolvidas.

A promoção das populações dispersas era e é, na prática da vida, impossível. O ensino, a assistência sanitária, a assistência técnica agro-pecuária ou industrial, o comércio e, de uma forma geral, a fruição dos benefícios do progresso só podiam e podem incidir nos aglomerados populacionais.

Assim, o aldeamento a que procedíamos e os aldeamentos que construíamos eram obra imensa de promoção e fomento. Talvez a maior obra então em curso em Moçambique e na grande maioria dos territórios africanos.

Naturalmente, muitos dos aldeamentos construídos e em construção e muitos dos que se iriam construir estavam e seriam inicialmente incompletos e imperfeitos, apresentando deficiências mais ou menos pronunciadas.

Tal resultava de certa limitação em meios, mas sobretudo da velocidade de execução.

Daqui o facto do aldeamento não terminar com a construção dos aldeamentos, mas, bem pelo contrário, esta construção ser apenas a fase inicial a que se seguiam outras numa tarefa contínua de melhoramento e aperfeiçoamento.

No relativo a muitas populações e como consequência dos seus hábitos tradicionais, verificava-se, de começo, alguma estranheza ao conceito de aldeamento e alguma dificuldade na vida de comunidade. Mas, após poucos meses de tal vida, ela tornava-se o normal, o natural e ninguém mais pensava em abandoná-la.

Outras populações, porém, de raiz mais evoluída, logo desejavam e solicitaram o aldeamento.

De resto, os aldeamentos eram abertos e quem os quisesse abandonar podia fazê-lo. Este abandono teve efectivamente lugar, mas apenas esporadicamente e somente nas áreas que a subversão tornara instáveis.

Os aldeamentos tinham, também, um papel na contra-subversão.

Um papel indirecto, ao constituírem antídoto do aliciamento subversivo, na medida em que, melhorando o nível de vida das populações, aumentaram o contraste com aquele que a Frelimo lhes podia oferecer.

E um papel directo, ao dificultarem o trabalho dos agentes subversivos e ao limitarem o terrorismo selectivo ou generalizado com que a Frelimo procurava obter coercivamente o apoio das populações.»

Espantosamente, porém, as Autoridades Centrais nunca se interessaram decididamente pelo aldeamento.

A contra-subversão

19 — Quando assumi o Comando-Chefe do Teatro de Operações de Moçambique, em fins de Março de 1970, a situação subversiva e contra-subversiva podia sintetizar-se como segue:

  • Niassa Norte — A subversão tinha sido praticamente derrotada pelos meus antecessores. A população estava na sua grande maioria aldeada, havendo apenas alguns focos subversivos nas altas montanhas e muito a norte.

  • Niassa Sul — Não existia praticamente subversão e a população estava em condições óptimas para o estabelecimento de um sistema de auto-defesa.

  • Lago Niassa — Estava inteiramente controlado pela Armada portuguesa em cooperação com as Forças Lacustres malawianas.

  • Cabo Delgado — O inimigo mostrava-se em plena força, bem enraizado no terreno, considerando as suas bases inexpugnáveis, com grande domínio sobre as comunicações terrestres, e acabava de lançar a sua grande ofensiva que tinha por objectivos o isolamento das nossas unidades, através de um lançamento maciço de minas, e uma profunda progressão para sul. Contudo, a Autoridade portuguesa local havia procedido a construção de uma faixa de aldeamentos a sul do rio Messalo, em verdade notável.

  • Tete — Verificava-se uma subversão incipiente.

20 — A estratégia inimiga tinha nessa época as seguintes finalidades principais:

  • formar ou consolidar um «exército de libertação» com base na etnia maconde;

  • atingir com tal «exército» o coração de Moçambique (região limitada pelo rio Zambeze, rio Luenha, fronteira com a Rodésia, estrada Vila Pery-Beira e litoral entre a Beira e a foz do rio Zambeze), separando Moçambique em três partes (Tete, o Norte e o Sul) e afectando as ligações Beira-Rodésia;

  • para tanto, manter uma acção reduzida no Niassa e exercer o seu grande esforço em Cabo Delgado.

No relativo à táctica, de respiração soviética, ela assentava mais na força do que na subtileza, admitindo grandes bases, colunas com efectivos avultados e acções maciças.

Aquela estratégia e esta táctica resultaram inicialmente, na medida em que as nossas unidades foram isoladas e o terrorismo progrediu acentuadamente para sul.

21 — Deste modo, o Comando-Chefe teve de determinar disposições e acções urgentes e mandou preparar um plano de fundo que neutralizasse e destruísse as intenções e actuações do inimigo e trouxesse a iniciativa para o lado português.

Assim, foi executada uma grande operação de reabastecimento aéreo das unidades isoladas, foi reforçada a faixa de aldeamentos do rio Messalo por forma a impedir a progressão para sul e, seguidamente, foi realizada uma também grande operação de levantamento de minas.

Mais tarde, na sequência do plano de fundo acima referido, lançou-se a maior operação que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português — a operação «Nó Górdio».

A operação, na qual se utilizaram novas tácticas com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia e em tropas especiais de assalto e, por outro, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado e posto em fuga. As suas baixas, se bem que infligidas no menor número possível, foram consideráveis. Não mais alguém pensou no «exército maconde» nem na sua progressão para sul. Restabeleceu-se o domínio português sobre as comunicações terrestres e as nossas forças passaram a ter inteira liberdade de acção e plena iniciativa.

Na exploração do sucesso, levada a efeito sobretudo por forças aero-móveis, o inimigo restante em Cabo Delgado quase desapareceu, refugiando-se na Tanzânia. E esteve à vista a vitória portuguesa total na área e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

A pedido do Presidente do Conselho de Ministros e do Ministro da Defesa Nacional, fiz uma intervenção televisionada em Lisboa, expondo honestamente a situação.

Esta intervenção valeu-me posteriormente multas críticas, pois tinha dado a entender um triunfo final breve, quando, dois anos depois, em 1973, este ainda se não verificara e, pelo contrário, parecia que a conjuntura havia piorado.

E era verdade. É que não contara, porque o não conhecia, com o erro Cabora Bassa.

22 — Cabora Bassa era e é uma realização de excepcional grandeza e importância no domínio da economia. Poderia ter transformado, no sentido do enriquecimento, todo o enormíssimo vale do médio e baixo Zambeze e poderia ter contribuído, por forma notável, para o progresso global de Moçambique.

Contudo, a construção de Cabora Bassa foi decidida e iniciada levianamente, sem que tivesse sido feita qualquer avaliação da sua projecção nos domínios político e estratégico. E, em consequência, sem que se tivessem tomado, nestes domínios, medidas adequadas. Tal facto constituiu grave erro do Governo de Lisboa.

Depressa Cabora Bassa se transformou no símbolo do sucesso. Ou Cabora Bassa era construída sem perturbações significativas e o êxito geral português consumar-se-ia, ou Cabora Bassa não era construída, ou na sua construção se verificaram perturbações sérias, e Portugal estaria derrotado.

Assim, Cabora Bassa — o estaleiro ligado à construção da barragem, a área da sua futura albufeira, os seus acessos de quase um milhar de quilómetros, pelos quais transitavam diariamente centenas de toneladas de cimento, semanalmente centenas de quilos de explosivos e, com frequência, equipamento num total de 36 000 toneladas que não podia, de modo algum, ser danificado e muito menos destruído, a sua linha de transporte de energia eléctrica de mais de 6 000 postes, etc. — passou a constituir questão vital e ponto de honra no relativo à sua segurança.

23 — A DGS, cuja informação estratégica era magnífica, logo informou da decisão da Organização da Unidade Africana de adopção de nova estratégia para Moçambique. A derrota espectacular da Frelimo em Cabo Delgado e a necessidade de impedir ou dificultar quanto possível a construção de Cabora Bassa foram as causas dessa nova estratégia.

Ela consistia fundamentalmente em:

  • continuar com a acção reduzida no Niassa;

  • com os restos do «exército maconde» e com os novos terroristas da mesma etnia, que entretanto fora possível recrutar e treinar, manter o esforço possível, embora secundário, em Cabo Delgado, com a finalidade de fixar forças portuguesas;

  • exercer o esforço principal em Tete, torneando Cabora Bassa, atingindo o istmo de Tete e seguidamente o Coração de Moçambique com as consequências conhecidas;

  • incluir neste esforço as acções possíveis contra Cabora Bassa e o ataque intenso aos seus acessos e acessório a estrada Rodésia-Malawi.

Mas não só a estratégia foi alterada, também a táctica. Esta, agora de inspiração chinesa, era extremamente subtil, com bases muito pequenas de vigência curtíssima e empregando grupos dígitos, peritos no aliciar e na realização de pequenas acções de grandes efeitos psicológicos e dotados de capacidade notável de diluição nas populações.

24 — A Portugal, conhecedor da futura estratégia inimiga, duas alternativas se punham e por mim foram propostas:

  • ou impedir essa estratégia, usando a poderosa arma económica que tinha sobre a Zâmbia no sentido de não permitir o trânsito de terroristas no seu território e, assim, impossibilitar o acesso destes a Tete;

  • ou fornecer ao Comando-Chefe os meios necessários para que, sem prejuízo do ritmo do sucesso em Cabo Delgado, se pudesse enfrentar a situação em Tete.

Contudo, nenhuma destas alternativas foi adoptada. A primeira, talvez porque o Governo de Lisboa não tivesse nem a posição nem a coragem para suportar as complicações que certamente surgiriam na ONU com o corte, em Angola e Moçambique, das vias de comunicação com os Oceanos Atlântico e Índico que serviam a Zâmbia e eram para ela de interesse económico vital. A segunda, certamente porque, nessa época, as Autoridades Centrais não primariam pela clarividência e capacidade de decisão.

Propus então que tropas numerosas, mais ou menos inactivas de Angola, dada a situação muito favorável ali vigente, fossem empregadas em Moçambique. E propus mesmo, para facilitar a sua manobra, que um Comandante-Chefe único fosse designado para os Teatros de Operações de Angola e Moçambique. Tudo foi recusado, tendo a minha proposta sido interpretada, segundo parece, não como uma medida bem intencionada e fecunda, mas apenas como desejo meu de ser o «dono» da guerra na África Austral.

E ficava Cabora Bassa com a sua grande imobilização de efectivos.

Resolvi então produzir mais tropas locais. E mais Companhias de Comandos e as primeiras dezenas de novos Grupos Especiais e de Grupos Especiais Paraquedistas foram mandadas constituir.

De Lisboa surgiram dificuldades, proibições, etc., mas mantive a minha decisão e, quando deixei Moçambique, aquelas Companhias de Comandos estavam em formação e aqueles GE e GEP encontravam-se quase prontos da sua instrução e treino.

25 — Enquanto mantinha toda esta polémica com as Autoridades Centrais, defini a nova estratégia portuguesa em Moçambique.

Ela baseava-se nos seguintes parâmetros:

Numa primeira fase defensiva

  • reduzir ao mínimo compatível com o equilíbrio táctico os efectivos no Niassa e em Cabo Delgado;

  • organizar em auto-defesa as populações do Niassa Sul;

  • procurar consolidar a faixa de aldeamentos do rio Messalo;

  • exercer o esforço nos acessos a Cabora Bassa, nas posições que a protegiam e noutras áreas-chave ou importantes do distrito de Tete;

  • acelerar o aldeamento das áreas convenientes do mesmo distrito;

  • tentar impedir as infiltrações ao longo do istmo de Tete e o acesso inimigo a áreas mais a sul e sudeste;

  • aldear as populações do istmo de Tete e do norte dos distritos de Vila Pery e da Beira.

Numa segunda fase defensiva-ofensiva

  • continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

  • com tropas vindas eventualmente de Angola, somente com alguns dos novos Comandos, GE e GEP ou com umas e outros, retomar a ofensiva em Cabo Delgado;

  • com a maioria dos novos Comandos, GE e GEP, consolidar a segurança do complexo de Cabora Bassa e eliminar as infiltrações que tivessem tido lugar no istmo de Tete e nas áreas mais a sul e sudeste;

  • manter e aumentar no possível o esforço de aldeamento.

Numa terceira fase ofensiva

  • efectuar com meios navais e aero-navais a interdição da albufeira de Cabora Bassa;

  • recuperar as tropas libertadas por tal interdição;

  • continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

  • com as anteriores tropas, com as recuperadas e com outros novos Comandos, GE e GEP, intensificar a ofensiva em Cabo Delgado e limpar o distrito de Tete a sul e a este da linha albufeira-Cabora Bassa-Furancungo.

26 — No decurso das operações correspondentes à primeira fase da estratégia referida verificaram-se:

  • o equilíbrio no Niassa;

  • certo recrudescimento de actividade inimiga em Cabo Delgado, com algumas perturbações sem significado especial na faixa de aldeamentos do rio Messalo;

  • a manutenção da invulnerabilidade da área da barragem em construção;

  • a manutenção do ritmo desta construção sem o atraso de um segundo sequer;

  • a manutenção da invulnerabilidade dos equipamentos transportados e da linha de transporte de energia eléctrica;

  • infiltrações inimigas no istmo de Tete e em áreas mais a sul e sudeste.

E apesar de em relação ao complexo de Cabora Bassa o sucesso português ter sido total e de as infiltrações no istmo de Tete e ao norte dos distritos de Vila Pery e da Beira serem reduzidas, a projecção psicológica destas infiltrações, quer em Moçambique quer na então Metrópole Portuguesa, foi enorme.

27 — Contudo, a análise fria da situação mostrava que o inimigo sabia que, com as tropas locais que tínhamos em preparação e que podiam e deviam ser multiplicadas, com a finalização da obra de Cabora Bassa no dia desde início previsto — símbolo do sucesso —, com as decorrentes repercussões psicológicas e políticas e com as vantagens tácticas oferecidas pela albufeira, a sua derrota seria um facto.

E concluiu que a única hipótese positiva, que lhe restava, era uma decisão obtida antes da formação de mais Comandos, GE e GEP e antes do termo da construção de Cabo Bassa. Daqui, o seu esforço desesperado no ano de 1973.

Esforço que, perante as suas extensíssimas linhas de comunicação, desde Dar-es-Salaam ou Nashingwea, atravessando toda ou parte da Tanzânia, a Zâmbia, Tete e o seu istmo, até ao centro de Moçambique, e por exceder as suas possibilidades reais, a mais não poderia conduzir do que ao seu esgotamento.

E assim sucedeu. A Frelimo conseguiu as referidas infiltrações nos distritos de Vila Pery e da Beira e esgotou-se.

Por outro lado, ela não tinha qualquer outra alternativa estratégica.

Estes factos podem ser negados. Porém, nem por isso deixam de corresponder à realidade.

V. AS POPULAÇÕES, A IGREJA, ADMINISTRAÇÃO CIVIL AS FORÇAS ARMADAS

As populações

28 — Em guerra subversiva, as populações constituem factor predominante, senão decisivo.

Em Moçambique, elas estavam sujeitas a uma acção inimiga de propaganda intensa que começava em Nova Iorque, na ONU, e terminava em cada tribo e em cada homem. Algumas, localizadas em áreas que contactavam directamente com países adjacentes, suportavam ainda uma acção coerciva, terrorista primária e implacável.

Por outro lado, as populações absorviam também a verdade portuguesa. E muitas delas sabiam da campanha levada a efeito para sua dignificação e promoção e dos estudos e trabalhos de valorização do território, como reconheciam ou acabavam por reconhecer as vantagens do aldeamento.

Mas, talvez acima de tudo, elas mantiveram as suas crenças, hábitos e tendências.

Tudo somado, o facto é que a grande maioria das populações moçambicanas sentia-se portuguesa ou, pelo menos, na luta em curso, opunha-se à Frelimo. Neste aspecto, distinguiam-se a etnia macua, a única inteiramente e só moçambicana, constituindo mais de metade do total demográfico, e os islamizados da orla marítima, também muito numerosos.

Tal fundamentava definitivamente a legitimidade e a moralidade e justiça da contra-subversão.

29 — Neste capítulo das populações, merece especial referência o caso dos Grupos Especiais e dos Grupos Especiais Paraquedistas, GE e GEP.

Inicialmente criados com a finalidade de constituírem pequenas boas unidades anti-terroristas e anti-guerrilha, depressa se transformaram em arma de elite na luta global em curso.

Cada GE, cada GEP, formado exclusivamente por voluntários, passou a constituir, na massa populacional de que era emanação e com a qual convivia e agia, centro irradiante de portuguesismo, factor capital de dignificação e promoção, instrumento importante de valorização, exemplo presente do benefício-aldeamento, que usufruía, e unidade de combate eficaz.

Formaram-se mais de uma centena de GE e GEP. Mas a afluência de voluntários era tal que poderiam ter-se constituído alguns milhares de grupos. E aqueles que, nas operações de recrutamento, eram recusados por falta de qualificação ou por excessiva quantidade, afastavam-se sem poderem esconder a sua desolação.

Os GE e GEP estavam em curso de se transformar numa instituição. Instituição que cobriria Moçambique inteiro e que, só por si, seria capaz de lutar e vencer.

Mas, estranhamente, as Autoridades Centrais sempre reagiram mal aos GE e GEP. E, ulteriormente, não se soube ou não se quis aproveitar esta magnífica juventude africana. Magnífica na sua generosidade, na sua pureza, na sua exigência e na sua autenticidade.

Não resisto, ao terminar esta referência, a transcrever a parte final da mensagem de despedida que lhes dirigi:

«GE e GEP!

Muitos têm os olhos postos em vós.

As próprias Forças Armadas a que pertenceis, as populações, o País e numerosos amigos estrangeiros. Todos estes vos olham na expectativa e com esperança e fé na vossa acção e nos vossos feitos.

E o inimigo fala em vós, de Pequim, de Moscovo, de Dar-es-Salaam, de Lusaka, através de constantes emissões radiofónicas ou doutros processos de difusão e propaganda, pela razão única de que vos considera e teme.

GE e GEP tendes já fama a sustentar e dilatar!

Sustentai-a e dilatai-a, pela tenacidade e agressividade no combate contra o inimigo e pelo esforço na ajuda às populações e na justiça e amizade com que as tratais.

Fazei-o para bem de Moçambique e de Portugal, fazei-o como lição ao Mundo.»

30 — Também neste mesmo capítulo das populações, uma nota particular, esta bem triste, não pode deixar de ser formulada a propósito de certo sector das populações de etnia branca.

Esse sector, ao que se julga auto-denominado de «os democratas de Moçambique», vivia acima de tudo sob o sentimento da hostilidade ao regime de Salazar e de Caetano. E estava ou procedia como se estivesse, não com Portugal, mas sim ao lado da Frelimo.

É quase espantoso como tal sector, vivendo há longo tempo «in loco», conhecendo ou de vendo conhecer perfeitamente Moçambique e os seus povos, se não apercebia de que a sua acção apenas contribuía para o drama imenso que foi e é a chamada descolonização.

E, presentemente, ou conseguiram, a tempo, sair de Moçambique com os seus haveres e não podem deixar de classificar-se como colonialistas que ali foram apenas para enriquecer, ou se encontram arruinados, lamentando a sua conduta.

A Igreja

31 — A Igreja moçambicana, apesar das grandes dificuldades que teve de enfrentar, particularmente nos últimos anos da luta, comportou-se no seu conjunto, como era de esperar, com sabedoria, prudência e acerto.

Do meio milhar de sacerdotes que a constituía, pouco mais de meia centena, muitos dos quais estrangeiros, agiu contra Portugal, inclusivamente colaborando com a Frelimo.

32 — Mau grado este diminuto número, o facto impressiona-me pois ultrapassa o meu entendimento de católico que alguém, religioso, e sejam quais forem as razões, aceite e muito menos apoie actos terroristas.

Igualmente me impressiona que incidentes infelizes, que nunca foi possível evitar em guerra alguma, não tenham sido relatados por certos sacerdotes na sua verdadeira dimensão, mas, bem pelo contrário, surgissem falsamente aumentados, agigantados mesmo, no que tinham de mais negativo, com propósitos de escândalo político oportuno a nível internacional.

E, também, não consigo encontrar explicação para o silêncio de alguns poucos elementos da Igreja, quando, na noite de 15 de Março de 1961 e nos dois ou três dias que se lhe seguiram, foram assassinadas com requintes de primitivo barbarismo, em Angola, mais de 7 000 pessoas, ou quando, recentemente e ainda hoje, se verificaram e verificam massacres, a quente e a frio, no ex-Ultramar Português, que atingiram já o quantitativo de centenas de milhares de pessoas.

A Administração Civil

33 — Havia, naturalmente, em Moçambique excelentes elementos na Administração Civil.

Contudo e no seu conjunto, tal Administração estava ultrapassada nos conceitos e nos métodos. Enfermava de ideias, sistemas e modos de actuação que haviam feito o seu tempo mas já se não adaptaram, nem ao sentir e saber dos povos, nem às teses ultramarinas portuguesas já então actualizadas.

34 — Não poucos foram os diferendos entre as Forças Armadas, que ali lutavam em todas as áreas de acção, e aquela Administração.

Em determinado momento, porém, a situação melhorou muito com um novo Governador-Geral, que, apercebendo-se desde o primeiro momento da situação, tudo procurou corrigir e muito corrigiu efectivamente.

E a plena harmonia de princípios e propósitos existente entre o Comandante-Chefe e o mesmo Governador-Geral permitiu que a luta fosse conduzida com unidade e que as divergências surgidas, aqui e ali, nos escalões de execução, depressa fossem sanadas.

As Forças Armadas

35 — Abordo agora uma das questões mais candentes relativas à luta em África — o comportamento das Forças Armadas.

36 — Começo por afirmar que uma luta com a natureza que referi, nas áreas de acção que citei, em regra só pode ser ganha pelo conjunto das forças de um País, lideradas pela política, e raramente apenas pelas suas Forças Armadas. O que estas normalmente podem e devem conseguir é impedir a derrota e conceder à política o tempo bastante, pouco ou muito, para que ela construa a vitória.

Mesmo assim, em Moçambique, as Forças Armadas quase terminaram com a luta em 1970/1971 e, de qualquer modo, concederam à política tempo mais do que bastante — e conceder-lhe-iam aquele que fosse necessário. E, ainda no começo do segundo semestre de 1973, as forças metropolitanas, na sua generalidade, mantinham-se firmes e razoavelmente capazes, e as forças locais cresciam quantitativamente e na sua eficácia.

37 — No relativo ao valor das Forças Armadas, um caso especial tem de evidenciar-se.

Ele é o das Tropas de Comandos, incluindo as formadas em Moçambique.

Tais Tropas, desde sempre excelentes, foram melhorando ainda e atingiram os mais altos padrões na sua concepção e maneira de serem portuguesas, na sua capacidade física, na sua coragem e bravura, na sua táctica e técnica, em síntese, no seu patriotismo e eficácia.

E os seus efectivos iam crescendo de acordo com as possibilidades de uma preparação apurada.

Elas acabariam por ser a coluna vertebral irredutível das forças militares.

Também aqui estranhamente, as Autoridades Centrais procuraram limitar o seu emprego em Moçambique e contrariaram francamente a formação dos Comandos moçambicanos. E, mais tarde, inconsciente ou deliberadamente, nada se extraiu da sua superior condição militar.

38 — Por mais absurdo e apóstata que pareça, foi a política, a quem foi concedido tanto tempo para vencer, que acabou por desmoralizar, desagregar e destruir o conjunto das Forças Armadas, impedindo-as de lhe garantirem mais tempo ainda.

A grande responsável pelo desastre ultramarino português é a política e não as Forças Armadas.

Mas a política é feita por políticos e a responsabilidade da política é a responsabilidade dos políticos.

Dos políticos anteriores e posteriores ao 25 de Abril que não souberam ganhar ou evitar a derrota e dos políticos posteriores ao 25 de Abril que quiseram perder. Naturalmente, que os primeiros são passíveis de acusação de incompetência e os segundos da gravíssima acusação de traição.

Simplesmente, antes e depois do 25 de Abril, havia políticos militares, em número pouco mais que dígito, mas havia-os.

Assim, se no campo civil há políticos a responsabilizar e, eventualmente condenar, no sector castrense não estarão em causa as Forças Armadas mas há também, naquele número pouco mais do que dígito, militares a responsabilizar e eventualmente condenar.

39 — Contudo, para julgamento pleno das Forças Armadas, resta esclarecer um ponto.

Este é o de saber se, à política desmoralizadora, desagregadora e destruidora, as Forças Armadas opuseram resistência que as dignificasse.

O processo de corrosão das Forças Armadas vem de longe. Denunciei-o pela primeira vez em 1958, em memorandum dirigido ao Presidente do Conselho de Ministros e em carta enviada ao Ministro da Defesa Nacional. Referi-o com frequência ao longo dos anos e, perante a sua intensificação e o desajustamento da orgânica e preparação das Forças Armadas a uma missão já concretizada, exprimi críticas com especial acuidade a partir de 1964, em lições do Instituto de Altos Estudos Militares e em conferências públicas, mas sobretudo em conversações e documentos reservados.

Semelhantes corrosão e desajustamento, em alguns casos provavelmente inconscientes mas noutros inteiramente premeditados, provinham de governos medíocres, de outros órgãos de soberania desinteressados, de cúpulas militares apáticas, de portugueses pouco motivados, egoístas ou renegados e, ainda, de estrangeiros e internacionais mal informados, errados ou representando interesses inconfessáveis.

A luta das Forças Armadas, em todo aquele tempo, foi muito a da sua sobrevivência ou vivência efectiva, em termos de ética e eficácia.

E, ultimamente, a maioria dos que, quase todos militares, se diziam defensores do prestígio das Forças Armadas, apenas contribuiu, ingénua ou criminosamente, para acelerar o seu colapso.

Perante tão prolongada e tamanha agressão, não é de aceitar qualquer acusação e, muito menos, qualquer propósito de condenação da Instituição Militar.

VI. CONCLUSÃO

40 — Pode sintetizar-se tudo o que ficou dito como segue:

  1. A luta conduzida por Portugal em Moçambique integrava-se na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente, embora tivesse, também, como causa a psicose terceiro-mundista de independência e, ainda, outras causas menores.
    À mesma luta pretendia conferir-se falsamente um carácter essencialmente de revolta interna, o que, por outro lado, impedia intervenções e temas de vulto.

  2. A luta conduzida por Portugal em Moçambique era construtiva e defensiva e foi levada a efeito pela forma mais humana, o que já a legitimaria e a tornaria moral e justa.
    Na mesma luta a grande maioria das populações, sentia-se portuguesa ou, pelo menos, opunha-se à Frelimo, o que fundamentava definitivamente a sua legitimidade, moralidade e justiça.

  3. Em 1970/1971, a vitória total, na área então chave que era Cabo Delgado, esteve à vista e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

  4. Em meados de 1973, a situação mantinha-se em equilíbrio no Niassa; verificavam-se certo recrudescimento da subversão e algumas perturbações sem significado especial em Cabo Delgado; o sucesso português relativo a Cabora Bassa era total, mantendo-se imutável o ritmo da sua construção; a Frelimo tinha conseguido infiltrações no istmo de Tete nos distritos de Vila Pery e da Beira, reduzidas mas de grande projecção psicológica; as forças portuguesas metropolitanas, apesar do esforço de desmoralização, desagregação e destruição que sobre elas incidia, mostravam-se na sua generalidade firmes e razoavelmente capazes, os Comandos, incluindo os moçambicanos continuaram excepcionais, e as outras forças portuguesas locais cresciam em quantidade e eficácia; a Frelimo encontrava-se esgotada.

    Na mesma época, estavam definidas as novas fases da estratégia portuguesa, a defensiva-ofensiva, baseada nos novos Comandos, GE e GEP e no aldeamento, e a ofensiva, que se seguiria, baseada em mais Comandos, GE e GEP, nos efeitos psicológicos e políticos do termo da construção de Cabora Bassa, nas vantagens tácticas que a sua albufeira ofereceria e, também, no aldeamento; a Frelimo não tinha qualquer alternativa estratégica.

É do acabado de referir que vou deduzir uma conclusão.

41 — Após o grave erro Cabora Bassa e apesar dele, qualquer das duas alternativas referidas no número 24, poderia ter terminado com a luta em Moçambique.

Em particular, se as Autoridades Centrais tivessem procedido com um mínimo de acerto, existiria uma estratégia a nível nacional e a respectiva reserva estratégica de forças. E esta reserva permitiria a adopção da segunda alternativa com a sua aplicação, durante três ou quatro meses, em Cabo Delgado, o que conduziria à consumação do triunfo final português em Moçambique. Mas não existia estratégia nacional, nem reserva nacional.

42 — Este outro erro igualmente grave deu lugar à conjuntura já descrita de meados de 1973.

Nesta conjuntura, evidenciavam-se os seguintes factores favoráveis a Portugal:

  • nenhuma intervenção externa de vulto de apoio à Frelimo, consequência do carácter interno que, embora falsamente, se pretendia imprimir à luta;

  • apoio da maioria das populações à causa portuguesa;

  • nova estratégia portuguesa perfeitamente definida;

  • manutenção do valor dos Comandos e acréscimo quantitativo e melhoria qualitativa das forças portuguesas locais;

  • efeitos psicológicos e políticos que resultariam do termo da construção de Cabora Bassa e vantagens tácticas da sua albufeira;

  • nenhuma alternativa estratégica para a Frelimo;

  • esgotamento da Frelimo.

E verificava-se o seguinte factor favorável à Frelimo:

— pequenas infiltrações, mas de grande projecção psicológica, nos distritos de Vila Pery e da Beira

A conclusão resultante deste quadro é evidente.

Isto é, apesar dos dois erros capitais citados e de tantos outros importantes, embora de menor projecção, o triunfo final português em Moçambique apenas fora adiado de 1970/1971 para alguns anos depois.

Entretanto, e sobretudo após o 25 de Abril, um outro factor favorável ao inimigo se generalizou e intensificou, tudo acabando por dominar — a política absurda e apóstata que, como disse, desmoralizou, desagregou e destruiu o conjunto das Forças Armadas.

Tal deu lugar à paralisação estratégica e mesmo a desonrosas atitudes de inoperância táctica perante o inimigo.

E tudo se perdeu.

ESTAVA A GUERRA PERDIDA?

Gen. Silvino Silvério Marques

Justificada a razão deste livro, referidos os conceitos essenciais em que se baseava a ideologia nacional e que serviram de suporte a uma doutrina de guerra que se foi criando e aperfeiçoando. não esquecidas as dificuldades que o prolongamento da luta armada nos trazia, e também ao inimigo, esboçado o panorama económico e diplomático vivido por Portugal no princípio de 1974, relatou-se com fidelidade e certo pormenor, a situação, nessa época, em cada um dos Teatros de Operações, segundo a opinião fundamentada e responsável de três comandantes-chefes daqueles Teatros, um deles também governador da respectiva província.

Com o seu preço de sangue diminuindo a partir dos anos 1966-1969 e o seu custo financeiro relativo em declínio desde 1968-1969, guerra havia, em princípio de 1974, ultrapassado, para a Nação e para as Forças Armadas, a sua fase mais aguda. Desde 1966-69 que o inimigo estava cada vez mais longe de a ganhar por acção militar. Só por acção política isso poderia ser tentado. E fardados ou não (infelizmente demasiados fardados), foram essencialmente políticos (bons, maus ou péssimos, a Nação os julgará um dia) que actuaram na rectaguarda em tal sentido.

Particularmente Angola, reflectindo e ampliando a situação geral de Portugal em todas as parcelas, desenvolvera-se espectacularmente nos mais variados sectores, nos treze anos de guerra e apresentava uma posição político-militar brilhante. Somente pessoas não informadas, ou com objectivos políticos suspeitos, não concluiriam que, salvo inesperado e grave incidente, a guerra se encaminhava naquela província para o seu fim, por exaustão militar e política do inimigo, exaustão que já constituía na altura facto consumado para o MPLA e para a UNITA e se previa para breve para a FNLA.

De tal forma isto era assim que algum tempo antes do 25 de Abril, foi esboçada por um emissário ligado a um dos Movimentos, por ele reconhecido como totalmente destruído, a exploração da possibilidade de colocar os quadros desse Movimento, e o que dele restava, à disposição das Forças Armadas Nacionais para, em conjunto, se enfrentar o único Movimento que então ainda se batia.62

O mito da invencibilidade da guerra subversiva, criado e difundido pelos revolucionários, que a ele iam recorrendo, e aceite por ignorantes, ingénuos e cobardes, posto em causa, nos nossos dias, na Malásia, na Grécia, no Quénia, em Cabinda, no Niassa e na América do Sul, ia ser destruído em Angola: no campo sócio-económico, no campo militar e no campo político a guerra ia, ali, ser vencida.

Em Moçambique. o inimigo atrevera-se penetrar com pequenos, mas corajosos, grupos, espectacularmente, através de Tete e certamente do Malawi, nos distritos de Vila Pery e da Beira. Esse atrevimento pagava-o com ónus logístico. As suas linhas de comunicações63, alongavam-se desmedidamente, uma vez que armamento e munições eram transportados, a partir de Dar-Es-Salaam, através da Tanzânia, da Zâmbia e, depois, essencialmente por Tete, e também, aproveitando talvez certa dificuldade de controlo, pelo Malawi. Ligados a Tete, os distritos de Vila Pery e Beira estavam isolados do norte da província e especialmente de Cabo Delgado, no extremo nordeste, região dos macondes, na qual o inimigo exercera inicialmente o seu esforço principal e onde ainda fazia pressão, a coberto do santuário da Tanzânia. Ajauas, e principalmente Macuas — leais e corajosos segundo os havia definido Neutel de Abreu, que os conhecera como nenhum outro — grandes etnias originariamente moçambicanas (embora a primeira se houvesse expandido também para Tanzânia) dos distritos de Moçambique, de parte do Niassa e de parte da Zambézia, constituíam uma barreira humana até então inexpugnável à subversão. Com o enchimento da albufeira de Cabora-Bassa, a qual atingiria larguras de 5 a 30 quilómetros, que se previa (e foi) concluída em Março de 1975, as dificuldades logísticas, e de ligação, do inimigo transbordado de Tete, tornar-se-iam muito agravadas, talvez insuperáveis. Tudo estava encaminhado para que a Armada se instalasse na albufeira e a vigiasse com eficiência. A conclusão de Cabora-Bassa e a facilidade de vigilância consentida pela alargada superfície líquida da albufeira, facilidade já experimentada, com êxito, há anos, no lago Niassa, iam consentir um reforço da acção das nossas forças nas restantes áreas, incluindo mais perfeita atenção à fronteira do Malawi. Tal como a abertura da frente leste em Angola, pelo MPLA, redundara para este Movimento, segundo testemunhos de elementos seus, confirmados pela realidade, num desastre militar, não só pela persistente, incisiva e hábil acção operacional, como pela logística difícil a que obrigara, algo de semelhante iria acontecer com Tete, donde o inimigo passaria a ter redobradas dificuldades de se expandir, após a criação da albufeira. A, acrescer a isto, os novos distritos que a partir de Tete (e do Malawi) estavam a ser envolvidos na guerra tinham uma ocupação completamente diferente de Tete e de Cabo Delgado, regiões essencialmente ainda de campesinato pobre. A subversão ameaçava directamente, pela primeira vez, zonas desenvolvidas, constituídas por boas fazendas e boas instalações industriais. A população de Moçambique estava a receber a primeira grande chicotada. Os acontecimentos da Beira, manipulados ou não, foram, de resto, um reflexo, embora triste, disso. Era necessário que essa chicotada se tornasse estimulante para os muitos que, com justificada irritação das Forças Armadas, viviam ainda alheados da guerra, a qual até então se travara nas regiões mais excêntricas, mais despovoadas e mais atrasadas da província. Chegara a altura de impulsionar a organização da defesa, objectivo por objectivo, com forte apoio dos imediatamente visados, tal como acontecera em Angola, anos atrás, em circunstâncias semelhantes, com total êxito.

A situação militar em Angola. a sua prosperidade, o acerto geral da orientação política-social, permitiam encarar, a breve prazo, a intensificada substituição dos contingentes recebidos da Europa por guarnições locais, militares e policiais, suficientemente desenvolvidas em efectivos, instrução e equipamento, o que a economia e as finanças da província suportavam cada vez com menor dificuldade. Grande parte dos efectivos nas fileiras, ou que por elas tinham passado, africanos e europeus, seriam absorvidos pelas forças policiais cuja estrutura a província estava em condições de melhorar decididamente. As economias em quadros, tropas e até financeiras, resultantes de tal evolução, reverteriam em reforço de Moçambique e da Guiné. O que até era justo, uma vez que tendo sido em Angola que, inicialmente, se fizera o grande esforço — de harmonia com a decisão: «rapidamente e em força» —, nunca mais os outros teatros de Operações, e muito especialmente o de Moçambique, puderam contar com os meios considerados necessários pelos chefes militares.64 O impacto, material e psicológico, de uma tal viragem teria repercussões no Portugal europeu e nas restantes províncias capazes de motivar entusiasmos, sempre indispensáveis no decorrer de uma guerra longa.65

Era mais complicado o panorama militar da Guiné, que constituía um pequeno teatro de operações, compartimentado por rios que muito dificultavam as comunicações e encravado entre países que apoiavam o inimigo, que deles partia ou a partir deles actuava, protegido, e a eles, por vezes, se acolhia, protegido, segundo as vicissitudes da guerra. Já no aspecto político a situação era diferente. A guerra da Guiné fora estranhamente conduzida, não para obter a «independência», como diziam, da Guiné, mas para obter a «independência» da Guiné e de Cabo Verde, e unir as duas províncias. Por outro lado, a guerra pôde ali ser, com certa singularidade, dirigida não por guineenses, mas essencialmente por cabo-verdeanos, os quais, embora constituindo a parte mais numerosa da elite intelectual e administrativa, eram também por isso, em geral, malquistos da população. O apoio soviético e cubano fornecido ao PAIGC revelou-se excepcional: foi na Guiné que apareceram os primeiros elementos cubanos, que chegavam a tomar parte em operações, e também as primeiras armas sofisticadas. Este empenhamento soviético e cubano revela que a vitória na Guiné, em princípio a mais fácil de obter nas três províncias em guerra, mas também, em si, aparentemente a menos decisiva em face da política ultramarina portuguesa, constituía para os marxistas um objectivo de extrema importância. Porquê? Pela própria Guiné e sua «independência» liderada afinal mais por cabo-verdeanos que por guineenses e com Conacri ao lado, já na órbita soviética? Ou antes pelo valor estratégico de Cabo Verde e pela indispensável ponte que os cabo-verdeanos da Guiné (na concepção para tanto criada da «independência» conjunta da Guiné e de Cabo Verde) garantiam para se atingir o Arquipélago, praticamente inacessível por outra forma? Após o 25 de Abril, nas «negociações» apressadamente iniciadas com o PAIGC, os responsáveis deixaram envolver o Arquipélago. Depois foi criado, através de equipas constituídas essencialmente por elementos marxistas da Armada portuguesa, o ambiente de terror que subverteu algumas ilhas. E assim caiu na órbita soviética Cabo Verde, a posição atlântica, mais importante da zona intertropical. Cabo Verde, o objectivo estratégico da guerra da Guiné, foi conseguido por uma subtil manobra de acção indirecta66, a única possível dada a paz em que o Arquipélago sempre tinha vivido e o seu isolamento físico e o patriotismo da sua população.67 De qualquer forma a singular e complexa situação que se referiu, o mal-estar permanente gerado entre cabo-verdeanos e guineenses do PAIGC e o seu reflexo na população, foram dando origem no decorrer da guerra, a aproximações e contactos entre responsáveis daquele Movimento e autoridades portuguesas. Talvez que o assassinato de Amílcar Cabral tenha sido consequência de tudo isto e também do peso da subordinação soviética de que sentisse necessidade de se libertar.

A solução militar definitiva da Guiné, mesmo com o reforço possível dos meios, não era pois fácil. Porém, com o problema de Angola resolvido, não seria certamente difícil chegar a esquemas que conduzissem a um resultado aceitável, em face das circunstâncias políticas que se esboçavam.

Angola constituíra-se, pelo notável desenvolvimento em todos os sectores, pela geral correcção da acção político-social e pelo êxito da acção militar, tudo resultando do interesse e do esforço devotado do Governo do país, dos sucessivos Governos-Gerais, da Administração local e, muito especialmente, das Forças Armadas e das suas populações de todas as etnias, na chave da solução da guerra, imposta do exterior, e que o nosso povo, de aquém e de além mar, tinha até então, corajosamente enfrentado. A vitória, em Angola, estava à vista. Com ela, toda uma evolução na situação do Ultramar português, convergente com a ideologia nacional era mais que previsível.68 O país pluricontinental e a nação multi-racial (e multicultural) acabariam por surgir fortalecidos, e até enriquecidos, da dolorosa provação provocada essencialmente por interesses que lhes eram estranhos.

É assim de admitir que, perante esta perspectiva, o inimigo imaginasse o recurso a grandes (e arriscados) métodos para tentar rapidamente, de um só golpe se possível, fazer perder a guerra que estava ganha. A solução eficiente, se concretizável, consistiria em fazer desmoronar a máquina militar, actuando na sua rectaguarda e no seu nervo: os quadros mais jovens. Apelando para sentimentos nobres, nuns casos, desprezíveis noutros, dispondo, aqui e ali, de enquadramento adequado, há muito objecto de preparação, não foi afinal difícil que idealistas, ingénuos, ambiciosos e frustrados se deixassem manipular. O 25 de Abril, sob o aspecto estrito da guerra que se travava, não pode hoje, após tudo o que ocorreu de manobras, golpes, cumplicidades, deixar de ser interpretado como estando inserido num vasto conluio, que ultrapassou o quadro nacional (e evidentemente a consciência de muitos dos implicados), o qual teve por objectivo impedir a vitória militar, económica e política que estava à vista em Angola e se reflectiria num volte-face em Moçambique e numa evolução favorável na Guiné. Portugal que havia disposto, nos mais difíceis anos de guerra, de estadistas excepcionais, governantes e e chefes militares, em geral, à altura da missão e, além dos soldados de sempre, de jovens oficiais que pelo seu comportamento recordavam os seus celebrados capitães de África, acabou por não contar, nas últimas promoções, com quadros à altura da sua História. Consciente ou inconscientemente, muitos acabaram por defender interesses opostos aos da sua Pátria que haviam jurado servir «com todos os seus territórios» até ao sacrifício da vida. O resultado dessa atitude quanto à guerra, ao destino do Ultramar, à chamada «descolonização», encontra-se presente sob os seus e os nossos olhos e constitui uma acusação viva que lhes está provocando, com o remorso e o medo, a alienação no prazer, nos baixos jogos políticos, na contínua intriga profissional no seio de uma Instituição destruída. A prazo não é de rejeitar, ainda como consequência daquela atitude e do desequilíbrio estratégico a que deu origem, a antecipação de um conflito mundial onde se jogue a sorte da civilização ocidental, se não da própria humanidade.

Executado o 25 de Abril, logo precipitadamente, as negociações oficiais com o inimigo se iniciaram pela Guiné aproveitando amizades feitas com o PAIGC. no tempo de guerra, por colaboracionistas portugueses tornados importantes após a Revolução. Segundo revelações já vindas a público, em paralelo com tais negociações oficiais foram decorrendo outras, secretas, de elementos militares da então poderosa Comissão Coordenadora do MFA e dos seus misteriosos orientadores. De tudo, que se deve ter mutuamente prejudicado, se não traído, e que se processou atabalhoadamente, sem dignidade, resultou ter-se sido incapaz de acordar o referendo, acabando-se por, sucessivamente vexado e vencido, entregar a Guiné a um partido que se sabia não ser representativo das populações. Cabo Verde foi, habilmente, envolvido no processo, embora o Arquipélago nada tivesse com a Guiné e a sua situação houvesse sido sempre de paz absoluta, como se disse. Em Moçambique esquema semelhante, do mesmo modo atabalhoado e talvez ainda menos digno, repetiu-se. Resultados idênticos, e em escala ampliada, foram obtidos. Quando chegou a vez de Angola já o desmantelamento aí se havia processado, por via nalguns casos ignominiosa, com descarados e escandalosos apoios, quase todos já suficientemente conhecidos.69

Timor, que vivia em absoluta paz, também foi envolvida na tragédia da «descolonização», por forma que constitui repugnante traição de poucos à sua Pátria e aos timorenses que sempre haviam dado provas de extrema lealdade e patriotismo. Também S. Tomé foi envolvida forçadamente no mesmo singular «processo».

A prioridade dada ou aceite, para as «negociações» teria, talvez como justificação procurar reduzir o risco militar, atenuando-o onde se reconhecia maior. Porém, orientados com a indispensável firmeza, e devidamente esclarecidos, possuíamos ainda excelentes e suficientes quadros para levarem soldados, que sempre tiveram valor não inferior ao dos seus chefes, a vencer a batalha da paz, que assim se perdeu, com o sacrifício de milhões de portugueses de todas as etnias e a desonra do nosso povo. Mas pode hoje perguntar-se se as «negociações» com o inimigo não deveriam ter decorrido simultaneamente (embora separadamente), ou se não deveriam ter começado por Angola, onde a sua situação era francamente de derrota. Com o MPLA e a UNITA, na altura, praticamente sem qualquer capacidade militar, não seria talvez difícil concertar a solução programada: o referendo. O exemplo daí resultante repercutir-se-ia nas negociações de Moçambique e da Guiné. Da forma sucessiva como as negociações decorreram, as vantagens foram todas para o inimigo. O tempo, e o exemplo negativo dado constituíram mesmo a via necessária para conduzir a abandonar Angola ao Movimento que mais destruído chegara ao fim da guerra. Aparentemente. Pois na realidade a província foi abandonada a cubanos actuando sob tutela soviética. Aconteceu assim por acaso?

A guerra estava perdida!

Assim proclamam, aos quatro ventos, com certo histerismo, os mais directos responsáveis da chamada «descolonização», da maior tragédia da nossa História, procurando justificar-se e cobrir-se.

Mas estava a guerra perdida?

Em Angola, achava-se a caminho de ser prática e definitivamente ganha económica, sócio-política e militarmente. Vitoriosa em Angola, a subversão teria os dias contados em Moçambique. Na Guiné a situação modificar-se-ia. Isso seria o sucesso da política ultramarina portuguesa.

A guerra não estava perdida! Foi o 25 de Abril (e a sua preparação) que traiu a vitória em Angola com as suas consequências previsíveis.

E nestas circunstâncias, em face da situação vivida no princípio de 1974, e depois de tudo o que aconteceu de então para cá, é inteiramente legítimo concluir que o 25 de Abril, focalizado nas suas consequências militares, estrategicamente revolucionárias na escala mundial, foi concebido, impulsionado e executado para que em Angola se não vencesse a guerra que o inimigo tinha perdido.

Terá havido «portugueses» que, conscientemente, se tenham deixado envolver em tão repugnante conluio?

Em oposição aos bravos que morreram pelo Ultramar, somente «os piores de todos nós».

Aquele «alguém» para o qual o Gen. Nórton de Matos clamava, em 1953, a atenção dos «Novos de Portugal» em patriótica advertência:

«Se alguém passar ao vosso lado e vos segredar palavras de desânimo, procurando convencer-vos de que não podemos manter tão grande império, expulsai-o do convívio da Nação».

Expulsai-o do convívio da Nação!

Gente que, para sempre, Camões estigmatizou em versos inesquecíveis70:

«Ó tu Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.»

Teriam sido poucos?

Nunca tão grandes!


  1. Numa linha tradicional, referenciada na última centúria pelas campanhas de África de fins do século XIX e princípios do século XX e pela intervenção na I Grande Guerra.

  2. «Descolonização» foi uma fórmula que, não aparecendo no Programa do Movimento das Forças Armadas, se difundiu premeditadamente. Formula imprópria quando aplicada por portugueses a caso português, pois pressupunha a existência de uma situação colonial que estava legal e, para a generalidade dos portugueses, sentimentalmente ultrapassada.

  3. News letter de Boston, Mass., publicação mensal destinada a servir as comunidades cabo-verdeanas dos Estados Unidos, no seu n.º 2, de Agosto de 1976, numa «reportagem» de John C. Wahnon, refere com certo pormenor, a celebração em Paris, perto da Ópera, em Maio de 1973, de um acordo entre elementos do PCP e do PS para estruturarem um movimento militar capaz de derrubar o Governo Português. O acordo teria duas cláusulas: a Rússia financiaria a organização do golpe; o PCP e o PS comprometiam-se a dar a independência imediata às Províncias Portuguesas que estariam representadas no acordo pelo PAIGC, MPLA e FRELIMO.

    Embora se trate apenas de uma notícia, ela ganha verosimilhança quando cotejada com a informação que nos dá o Secretário-Geral do Partido Comunista Português, a p. 50 do Relatório para o VII Congresso, Ed. Avante!, aparecido no final de 1976: «Durante anos, a questão colonial criou dificuldades à unidade das forças antifascistas; porque, ao contrário do PCP, as correntes republicanas, liberais e socialistas defendiam posições colonialistas e neocolonialistas. O PCP teve por isso sérios confrontos com outros sectores da Oposição. (…) Estas divergências mantiveram-se sempre vivas no tempo do fascismo, embora nos últimos tempos alguns sectores tenham evoluído. Assim o Partido Socialista (PS) formado em Maio de 1973 na base da Acção Socialista Portuguesa (ASP) declarou-se «radicalmente anticolonialistas e pelo «direito à autodeterminação». Em Setembro de 1977 num encontro de delegações do PCP e do PS, este último acabou por subscrever o comunicado em que se afirma o objectivo do «fim da guerra colonial e negociações com vista à independência dos povos de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Anote-se que as Províncias de Cabo Verde, S. Tomé e Timor não são citadas, parece, no comunicado referido. Estavam em completa paz.

    Que teria levado o PS a modificar o seu ponto de vista? Acordos deste tipo têm preço. Na Cronologia Sumária apresentada nas últimas páginas de «Portugal Amordaçado», de Mário Soares, Arcádia, 1.ª ed. em Português. Lisboa, Out. 74, são representadas as seguintes efemérides, preenchendo o ano político de 1973 (ano do colapso do MPLA em Angola):

    — Assassinato, em Conakry, de Amílcar Cabral.
    — Compasso de transformação da ASP em Partido Socialista (Abril).
    — Denúncia dos massacres de Wiriamo.
    — Grande fracasso internacional da visita a Londres de Marcello Caetano.
    — Renúncia à Assembleia dos Deputados «liberais».
    — Primeira Assembleia de oficiais; criação do Movimento das Forças Armadas (M.F.A.)».

    Não pode deixar de surpreender a não inclusão do importante acordo de Setembro de 1973 com o PCP, citado no Relatório do Secretário Geral do PCP. Como é lícito atribuir significado à referência a meses diferentes (Maio, no Relatório e Abril na Cronologia) para a transformação da ASP em PS. Pode inferir-se que houve dois acontecimentos importantes, um em Abril, certamente a «transformação da ASP, e outro em Maio, a viragem do «novo» partido quanto à política ultramarina ( viragem não referida na Cronologia que, entretanto, dá importância à vigília da Capela do Rato, incluindo-a nas efemérides de 1972…), viragem talvez feita nas condições da «reportagem» de John C. Whanon, e que se teria formalizado, após acções concretas desencadeadas pelo PS — como as escandalosas manifestações de Londres que tiveram intervenção pessoal de elementos destacados do PS — em Setembro, segundo é indicado no Relatório, e omitido na Cronologia.

    De qualquer forma, a Cronologia mostra que, a partir da transformação da ASP em PS, ocorrem acontecimentos em série, de um mesmo cariz, que culminaram com o aparecimento do Movimento das Forças Armadas (é assim que se designa na Cronologia de 1973 o que nesse ano era chamado apenas Movimento dos Capitães…). Não se afigura fruto da imaginação encontrar um nexo entre todas as efemérides, que, dir-se-iam alíneas, com convenientes omissões, de um programa executado.

    É, assim, legítimo associar as duas informações (a do Relatório e a da Cronologia) à notícia de John C. Wahnon, que, desta forma, ganha verosimilhança. Ainda, para recortar a notícia, Pompílio da Cruz, que tão bem informado se mostra em variadas e enigmáticas ocorrências, afirma a p. 149 de Angola. Os Vivos e os Mortos, Ed. Intervenção, Lisboa, 1976: «Nesse contexto, Paris foi a cidade escolhida para, em Setembro de 1973, os partidos comunista e socialista portugueses talharem e retalharem o Ultramar». O Secretário Geral do Partido Socialista teria sido «o cavalo de Tróia, como agente motor global do PC (…). Os dois partidos dispõem — e dispuseram antes do 25 de Abril — de fundos inesgotáveis».

    A tudo acresce ter-se notícia de que oficiais do Quadro Permanente, mais tarde revolucionários do 25 de Abril, pertencentes às suas das correntes inicialmente dominantes, tomaram parte em reuniões, em Paris, em Agosto e Setembro de 1973.

    Anote-se que na Cronologia, surpreendentemente, também se omite, no ano de 1974, o lançamento do livro do Gen. Spínola — Portugal e o Futuro — cuja edição de 220 mil exemplares não tem paralelo entre nós. E a publicação desse livro constitui um dos factos políticos de então de mais transcendente importância.

  4. Segundo alguns comentadores de formação marxista a justificação do comportamento revolucionário dos capitães está na sua origem social. A contrário dos oficiais mais antigos, que proviriam de famílias aristocráticas e burguesas os capitães seriam oriundos do povo… Trata-se de justificação puramente demagógica. Entre os oficiais superiores mais antigos e os oficiais-generais anteriores a 2) de Abril, só muitos os filhos de famílias modestíssimas (como de resto entre ministros e primeiros ministros de então…). Somente que era circunstância que ninguém precisava de ostentar como privilégio… Os critérios que nesse tempo filtravam o acesso à Escola do Exército eram o da classificação universitária e o da robustez e desembaraço físico. A origem social era desconhecida. Os oficiais superiores mais antigos e os oficiais-generais anteriores ao 25 de Abril, oriundos de todas as classes sociais, que a Escola do Exército amalgamava sem qualquer dificuldade, haviam apenas sido, na sua grande maioria, dos alunos mais classificados das Escolas Superiores de Lisboa, Porto e Coimbra.

  5. Vide artigo do Dr. Salgado Zenha no jornal A Luta de 7, 8 e 9 de Outubro de 1975

  6. Destas hesitações, que culminaram no governo do Dr. Marcello Caetano, são balizas, nos últimos anos, os livros Estratégia Estrutural Portuguesa, de S. Silvério Marques, Lisboa, 1970, Na Hora da Verdade, de F. Pacheco de Amorim, Coimbra, 1971 e Portugal e o Futuro, de António de Spínola, Lisboa, 1974. Esta última obra defendia, pela pena de um prestigiado general, a tese da Federação, durante muito tempo perfilhada pelo referido Presidente do Conselho.

  7. Entre estes, recordamos Afonso de Albuquerque, Padre António Vieira, Marquês de Pombal, Sousa Coutinho, Honório Barreto, Paiva Couceiro, Nórton de Matos.

    Em 1953, três anos depois de se haver candidatado pela «Oposição» à Presidência da República, e oito anos antes do desencadeamento do terrorismo em Angola, exortava, o General Nórton de Matos os Novos de Portugal nos seguintes termos: «Que a vossa principal tarefa seja o engrandecimento da Pátria, dignificando-a (…). Não deixeis que ninguém toque no território nacional. Conservar intactos, na posse da Nação, os territórios de Aquém e Além-mar é o vosso principal dever. (…) Se alguém passar ao vosso lado e vos segredar palavras de desânimo, procurando convencer-vos de que não podemos manter tão grande império, expulsai-o do convívio da Nação. (…) Tomai a peito o desenvolvimento paralelo dos territórios portugueses: — que a totalidade dos recursos e das energias nacionais seja aproveitada para a organização da Nação Una …». E proclamava: «A Nação é uma só, formada por territórios situados na Europa e noutros continentes (…). Não queremos parcelas diversas (…). Temos de tender para um território único, cujas partes se conservem sempre unidas apesar da distância que as separam !…)». Com a sua experiência de ultramarino e o seu coração de grande português aconselhava: «Deixemos, mais uma vez o peço, em sossego a cor e a raça e qualificativos que tanto destroem a Unidade Nacional, que todos agora tomámos a peito manter e fortalecer: — unidade de territórios, unidade de pessoas». (Nórton de Matos, A Nação Una, Ed. Paulino Ferreira e Filhos, Lda., Lisboa, 1953. Inclui um Prefácio do Prof. Egas Moniz, prémio Nobel, e exposições feitas na Academia das Ciências de Lisboa em defesa do livro que concorrera ao prémio Abílio Lopes do Rego, pelo Prof. Egas Moniz e pelo Prof. Barbosa de Magalhães).

  8. Assim aconteceu com Oliveira Martins que, a respeito de África, se mostra, em 1880, um visionário presunçoso e até ridículo. Na sua obra clássica O Brasil e as Colónias Portuguesas, Guimarães e Comp., 6.ª Ed., Lisboa, 1953, p. 262 e seguintes, afirma: «Não haverá, porém, motivos para supor que esse facto do limite de capacidade intelectual das raças negras, provado em tantos e tão diversos momentos e lugares, tenha uma causa íntima e constitucional? Há de certo e abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropóide, e bem pouco digno do nome de homem (…). Em todos estes sinais os negros se encontram colocados entre o homem e o antropóide (…). Não bastarão acaso essas provas para demonstrar a quimera da civilização dos selvagens, que foi o sonho vão dos jesuítas? E se não há relações entre a anatomia do crânio e a capacidade intelectual e moral, por que há-de parar a filantropia do negro? Por que não há-de ensinar-se a Bíblia ao gorila e ao orango, que nem por não terem fala, deixam de ter ouvidos, e hão-de entender, quase tanto como entende o preto, a metafísica da encarnação do Verbo, e o dogma da Trindade? (…) Concluindo, portanto, seja-nos lícito perguntar: E nós? E a nossa Angola? E Moçambique? (…) Ou devíamos, com franqueza, aplicar também a Angola o único sistema sensato a seguir com todo o resto: enfeudá-la a quem pudesse fazer o que nós decididamente não podemos; repetir o que se praticou com a Índia e esteve a ponto de se fazer em Lourenço Marques (…). Estar de arma — sem gatilho — ao ombro, sobre os muros de uma fortaleza arruinada, com uma alfândega e um palácio onde vegetam maus empregados mal pagos, a assistir de braços cruzados ao comércio que os estranhos fazem e nós não podemos fazer; a esperar todos os dias os ataques dos negros, e a ouvir a todas as horas o escárnio e o desdém com que falam de nós todos os que viajam na África — não vale, sinceramente, a pena».

    Esta posição de abandono enunciada, na visão e situação descritas por Oliveira Martins, em 1880, é invocada por Mário Soares, em abono das suas teses, em 1972, a p. 462 de «Portugal Amordaçado», ed. cit.

  9. Pensamos em António Sérgio que, ao analisar (conferência pronunciada em Lisboa em Janeiro de 1925, Ensaios, t. II, 2ª ed., pp. 85-122) o que chama «política de Transporte» e «política de Fixação» frisa bem que a «doutrina da Fixação» não é uma ideia exclusivista: «não pretendo que desistamos de comerciar e exportar… o que se critica (ou condena) na política do Transporte não é o facto do Transporte nem a exploração do Ultramar: é o supor que tal política, por si só, com exclusão da outra, resolve o problema nacional… Não há que discutir as Navegações: eram fatais e foram impostas à nossa pátria pelas condições agro-clímicas da nossa terra, pela própria maneira como nasceu…»

    António Sérgio não deve ter voltado ao Ultramar depois de ter quebrado a sua espada de Oficial de Marinha com o advento da República. Se ali tivesse voltado nos anos 60, talvez o seu conceito de Fixação se actualizasse, alargado a toda a nossa grande Pátria, e certamente concluiria que se estava a caminho de um equilíbrio correcto entre a política de produção e a política de circulação.

    Infelizmente, na mente, na pena, e na acção dos seus discípulos, dos sergianos, as ideias de António Sérgio quanto à Fixação e ao Transporte, foram radicalizadas e sobrepostas ao derrotismo e arianismo de Oliveira Martins, em vez de se haverem actualizado e ajustado com as de Nórton de Matos, que além de conhecer bem o Ultramar se mantivera informado quanto à sua evolução, podendo afirmar, em 1953, no final de A Nação Una, ed. cit.: «basta o que deixo dito neste livro para mostrar como a Nação Una está surgindo cheia de vitalidade, de alegria e de entusiasmo por ver que lhe foi possível, neste meio século de vida nacional, avançar notavelmente a obra há tantos séculos iniciada…».

  10. No editorial do primeiro número da revista «Critério» (Nov. 75), a qual retomou, em Nota de Abertura, o manifesto do número inicial da «Seara Nova» (15 Out. 21), na linha de Oliveira Martins, usando a terminologia de António Sérgio ( ambos, entre outros, evocados no mesmo Editorial, e o seu pensamento radicalizado pelos sergianos, afirma-se com certa insensibilidade, em tom interrogativo e enigmático, embora concluindo com determinação e fé (rectangular, ibérica, universalista-maçónica ou marxista?): Em 25 de Abril de 1974 cessaram as consequências da conquista de Ceuta; retrocedemos ao 20 de Agosto de 1415. / Durante quinhentos anos fomos o país que sabemos que fomos. Hoje somos outro. Que país? / Estamos na agonia de um sistema económico e político que foi o do Transporte. Regressámos a um ponto de partida — a Fixação. / … Estamos no auge da Involução? Circuito fechado de amplitude histórica? / … Evitemos o anátema: hoje ou ontem. Vamos exigir o impossível: o amanhã.»

    Recordemos entretanto que em 1926: «A Seara Nova entende que a finalidade ideal da Nação, maior e profunda razão da sua independência, se liga indissoluvelmente à posse dos seus domínios do Ultramar…». «Seara Nova» n.º 68 e 69 de 9 de Jan. 26. Número especial organizado por Jaime Cortesão, com a colaboração, entre outros, de Armando Cortesão. Em «Seara Nova» — Antologia, Vol. II. Lisboa, 1972. Organização de Sottomayor Cardia, p. 14.

  11. Tem-se a sensação de que as perdas sofridas pelo património cultural com a Revolução são enormes. Como em outras épocas de crise, na nossa História, os Museus e Bibliotecas do Mundo vão enriquecer-se à custa da incultura e da corrupção de alguns portugueses.

  12. Números obtidos em Serviços Oficiais. As comparticipações da Guiné, de Angola e de Moçambique foram contadas até aos anos das respectivas ‘independências’ 26 de Agosto de 74, 25 de Junho de 75 e 1 de Novembro de 75

  13. Cálculo com base nas Despesas de 1960 (3 357 milhares de contos) empoladas de 6% por ano.

  14. Números obtidos em Serviços Oficiais que são a som dos seguintes Orçamentos de Despesa: Orçamento Ordinário, Orçamento Suplementar de Defesa e Orçamento das Forças Militares Extraordinárias no Ultramar e Orçamento Privativo das Forças Armadas Ultramarinas, Fundo de Defesa Militar do Ultramar, Plano de Reequipamento Extraordinário do Exército e da Força Aérea.

  15. Este ritmo é inferior ao do crescimento do PNB a preços correntes no período referido, que foi, no Portugal europeu, de 11,5% por ano.

  16. Em 1965, em período de paz, os recursos consagrados à Defesa, em França, representaram 20% do orçamento do Estado. De 1965 a 1975 baixaram a menos de 11%. O actual plano prevê um crescimento que atingirá de novo os 20% em 1982. (Em França, Forças Armadas. Para quê? Como?, Cor. Gomes Bessa, Revista Militar, nº 8-9, Lisboa, Ag.-Set. 76, pp. 493-494).

  17. A guerra que sustentámos em três frentes envolveu, de 1961 a 1973, uma média de 107 095 homens de efectivo; e custou, por homem e por ano, cerca de 70 contos. A guerra do Vietname custou aos Estados Unidos 3348 milhões de contos, envolveu de 1964 a 1973 uma média de 289 489 homens das Forças Armadas US de efectivo e custou, por homem US e por ano, 1258 contos (Statistical Abstract of US 1975. US Department of Comerce, 510 e 528).

  18. Sobre este aspecto, veja-se o artigo «Vencer a Lassidão» que, assinado por Manuel de Angola, escrevemos na sétima página do Diário Popular, de 12 de Jan. de 74.

  19. Relatório do Banco de Portugal — Gerência de 1975 — 1.º vol., p. 60

  20. Números estimados a partir do total nos 3 Teatros de Operações de 66 898 em 1961, 74 501 em 1962 e 80 998 em 1963.

  21. Os números são aproximados dado que as rendições nem sempre se fizeram nos prazos certos.

  22. Contadas para a Guiné desde 1 de Maio 63

  23. Contadas para Angola desde 1 de Maio 61

  24. Contadas para Moçambique desde 1 de Novembro 64

  25. «Outros motivos» incluem acidentes de viação, acidentes com armas, outros acidentes, doenças e desaparecidos

  26. As baixas foram registadas na Guiné, a partir de 1 de Maio 63; em Angola, a partir de 1 Maio 61; em Moçambique, a partir de 1 Novembro 64 e nos 3 Teatros de Operações, até 1 de Maio 74.

  27. Contaram-se 4 016 dias de guerra na Guiné, 4 746 em Angola e 3 647 em Moçambique e utilizou-se o valor médio de 4 076.

  28. De 1961 a 1973, os efectivos nos 3 Teatros de Operações somaram 1 392 230 homens, o que corresponde a uma média anual de 107 095 homens (ver III Quadro). Os índices foram calculados para esta média anual e para a duração média de guerra de 4 076 dias.

  29. Segundo o «Field Manual 101-10-1» de 1972 do Exército dos Estados Unidos, e com base em dados da II G.G. na Europa, os índices correspondentes para um Teatro de Operações em guerra clássica não nuclear, são 0,14, 0,55 e 1,62 (Quadro 4-10, p. 441). A aplicação destes índices aos efectivos e à duração da Guerra do Ultramar daria um total de 61 112 mortos em combate, 240 083 feridos em combate e 707 154 feridos por acidente e doentes.

  30. Número de processos de invalidez organizados, ou em vias de organização, por acidente, em serviço e em combate; no Exército, até 31 de Julho 74. Não se obtiveram números relativos à Armada e à Força Aérea,

  31. As nossas Forças Armadas integravam portugueses de todas as etnias: ofereciam, lado a lado, um conjunto soberbo e inesquecível de africanos, europeus, asiáticos e seus miscigenados. Não se consideram as Forças Militarizadas, que tão importantes serviços prestaram às Forças Armadas, apenas por carência de elementos.

  32. Estes, especialmente na medida em que a sociedade portuguesa ainda os não integra completamente e com justiça, e sobretudo quando perdem a legitima e orgulhosa dignidade deixando-se manipular e renegando a honra que lhes é devida.

  33. Embora se não disponha de números certos quanto às baixas sofridas pelo inimigo entre os seus combatentes, um estudo feito em Moçambique em fins de 1972 concluía que sendo os efectivos do inimigo de 1/7 do das nossas Forças Armadas, os seus mortos em combate eram 20 vezes e os seus feridos referenciados 10 vezes superiores aos das Nossas Forças.

  34. «Um ponto negro havia porém no horizonte da Nação: as ameaças que pairavam sobre o nosso domínio colonial… A intervenção de Portugal na Grande Guerra resultou exclusivamente da existência deste formidável perigo que impendia sobre as Colónias portuguesas» (Gen. Nórton de Matos, «A Grande Guerra e as Colónias Portuguesas», em «História da Expansão Portuguesa no Mundo», III vol., p. 427, Lisboa, 1940).

  35. Os números citados são extraídos do estudo referido na nota anterior.

  36. Só foi possível obter o número absoluto do período e o valor médio anual correspondente.

  37. Valores obtidos a partir de efectivos estimados.

  38. Valores correspondentes apenas a Novembro e Dezembro 64.

  39. No Vietname, para as F. Armadas US, de 1964 a 1972, a média anual foi de 14,7 por mil e o valor máximo atingido em 1968, foi de 23,5 por mil. (De elementos colhidos em Statistical Abstract of US, 1975, US Department of Commerce).

  40. «Juro servir a minha Pátria e lutar pela sua independência e pela integridade dos seus territórios; respeitar a Constituição e as Leis do meu País; observar rigorosamente a disciplina militar; obedecer aos meus chefes; ser fiel aos princípios de honra do Exército Português e cumprir dedicadamente as missões que me forem confiadas, mesmo com sacrifício da vida». Este o compromisso tomado perante a bandeira nacional, por todo o oficial português e que, assinado, consta do seu processo individual.

  41. De uma forma simplificada, são faltosos os indivíduos que faltam à Junta de Inspecção na época normal; são compelidos os faltosos que tenham faltado também à Junta da época de incorporação; são refractários os indivíduos aptos que se não apresentem à incorporação; constituem-se em desertores os ausentes sem licença por mais de oito dias consecutivos.

  42. Índice estimado a partir do número de faltosos.

  43. O comportamento de alguns pais — sobretudo de algumas mães, de famílias conhecidas — ajudou a empolar escandalosamente certos números e influenciou o clima que tornou mais propício o claudicar dos jovens do quadro permanente das Forças Armadas.

  44. Até ao 25 de Abril, o inimigo praticamente não fez prisioneiros às nossas Forças Armadas. Embora o não possamos quantificar, o número de prisioneiros feitos às Forças inimigas e em especial o número de combatentes que se apresentou às nossas autoridades foi bastante avultado e inclui elementos político-militares importantes.

  45. Números estimados.

  46. No Vietname, segundo Statistical Abstract of US, 1975, US Department of Commerce, Quadro 531, p. 327, a per milagem anual das deserções foi, entre 1967 e 1974, de 23,4 com um máximo de 33,9 em 1971. São valores superiors respectivamente 180 e 81 vezes aos verificados na nossa Guerra do Ultramar.

  47. Com os índices verificados no Vietname para as forças militares U.S., o nosso número de desertores, para igual efectivo médio (107 095) e o mesmo número de anos de campanha (13), teria atingido os 32 850 homens.

  48. A um Comandante-Chefe de Angola foi um dia perguntado por alta entidade dos Estados Unidos, que visitava a Província, qual a razão por que os soldados portugueses se batiam tão bem e não desertavam, uma vez que, no Vietname, as F.A. americanas se defrontavam, nesses aspectos, com alguns problemas. O Comandante-Chefe, com simplicidade e verdade respondeu: a razão está em que os soldados portugueses de todas as etnias se batem pela sua Pátria. Ao mesmo Comandante-Chefe foi solicitada, por militares estrangeiros deslocados a Angola, uma viagem de centenas de quilómetros, por zona que considerávamos relativamente controlada, mas com certo perigo. Fizeram questão, para nos pôr em dificuldade, em se deslocar por terra. O Comandante-Chefe acedeu. E forneceu-lhes uma pequena escolta constituída exclusivamente por tropa africana. Ficaram elucidados.

  49. Nota do Editor: Trata-se do Almirante Pinheiro de Azevedo, segundo artigo em Semanário de 18 de Abril de 1984

  50. A esta opinião de um alto responsável é oportuno acrescentar as palavras do Ministro das Finanças do I Governo Constitucional51, na posse dos Vice-Governadores do Banco de Portugal, em 17 de Jan. de 77 ao referir-se à situação, dois anos e meio após o 25 de Abril: «Caiu a produção, caiu o investimento, caiu a taxa de poupança, caiu o valor das nossas disponibilidades de pagamento sobre o exterior. Subiu o desequilíbrio nas contas do sector público, subiu a inflação, subiu o défice de pagamentos (…); andamos a viver com aquilo que os estrangeiros produzem; no dia em que não tivermos mais reservas, não poderemos comprar o que hoje gastamos sem sentido nem moderação».

  51. Nota do Editor: Henrique Medina Carreira

  52. Utilizaremos elementos cedidos por um perito que viveu inteligente, corajosa e patrioticamente o problema e o conheceu, por dentro, como, talvez, nenhum outro português contemporâneo.

  53. Este relatório encontra-se publicado na Revista Militar, n.º 5, de Maio de 1976.

  54. Desprezo que tem contrapartida na vergonha que tantos sentimos e alguns, insuspeitos, já têm, com autoridade, confessado e na evidente e justificada desconfiança que causamos a aliados pelo nosso comportamento e pela incompetência que demonstrámos.

  55. Virá a invasão marxista da África meridional a saldar-se num Vietname de sinal oposto? A acontecer isso será fruto de uma estratégia? Que hipótese importante a merecer a atenção de portugueses conscientes!

  56. Nota do Editor: Rocket Propelled Grenade - Granadas-foguete anti-carro de concepção soviética. RPG-7 RPG-2

  57. Nota do Editor: Lança-foguetes anti-aéreos portátil de concepção soviética 9K32 Strela-2

  58. As expressões Frente Leste e Frente Norte que, por vezes, irão empregar-se, não são correctas mas são usuais. Com efeito, especialmente na guerra subversiva, as forças em luta não estão separadas por linhas ou frentes; actuam simultaneamente em certas zonas. Mais apropriados são os termos Zona Leste e Zona Norte mas que, em Angola, correspondiam a conceitos operacionais e territoriais muito mais amplos, pois incluíam áreas onde havia subversão e outras onde não havia, mas que se considerava constituírem um todo, do ponto de vista militar, que se colocava sob um comando. Quando se utiliza a expressão Frente, que não é exacta, ela acha-se incluída numa Zona ou é uma parte dela.

  59. Em Angola, entre o começo de Out. de 72 e de Out. de 73, foram recuperadas, no total, aos movimentos subversivos quase 17 000 pessoas.

  60. Este recrutamento coercivo provocou a apresentação às forças nacionais de perto de 4000 indivíduos.

  61. Numa entrevista do Almirante Rosa Coutinho ao Diário de Notícias de 10 de Nov. de 75, diz-se: «Uma das dificuldades que se apresentou para a descolonização de Angola foi o facto de militarmente a guerra colonial não apresentar ali, em 25 de Abr., as mesmas condições que se verificavam em Moçambique ou na Guiné. Assim, em Angola, as forças portuguesas dominavam praticamente quase todo o território. Os movimentos, de certo modo, estavam a ser batidos, excepto na região de Cabinda, e o movimento que mais sofreu com isso foi exactamente o MPLA.

    Dada a acção das guerras coloniais portuguesas, o MPLA, no 25 de Abr., estava praticamente destroçado sob o ponto de vista militar. Naturalmente que esta situação veio depois a complicar o problema da descolonização, já que o movimento com maior implantação política era, na altura, o militarmente mais fraco».

    Não sabemos, no que se refere a Cabinda, em que se fundamenta a afirmação feita de que «os movimentos, de certo modo, estavam a ser batidos, excepto na região de Cabinda…», pois no 1.º trimestre de 1974, bem como em 25 de Abr., a actividade contra essa parcela do território de Angola era exercida apenas pelo MPLA e consistia em incursões de pequena profundidade e duração ou em acções de fogo a partir da República Popular do Congo, que nunca chegaram a constituir perigo grave.

  62. É de aproximar esta situação, e a desesperada busca de apoios dela decorrente, das diligências que tiveram lugar em 1973 (ano trágico para o MPLA) e culminaram nas posições assumidas pelos marxistas portugueses em Abril/Maio e em Setembro daquele ano, em Paris, às quais já fizemos referência.

  63. Menos determinantes, mas ainda assim importantes, mesmo numa guerra subversiva.

  64. A simples inversão das percentagens dos efectivos atribuídos a Angola e a Moçambique (percentagens que em 1973 eram respectivamente, conforme o III Quadro, de 43% e 37%) correspondia a aumentar de 18% os efectivos das Forças Armadas em Moçambique.

  65. Em conversa com o Dr. Salazar, nas vésperas da nossa partida para Angola em fins de Out. ou princípios de Nov. de 62, foi-nos recomendado — «Vai ser uma longa guerra. Tem de se tornar económica em baixas, em efectivos e em despesas».

    Vai ser uma longa guerra… A da Restauração, a mais importante das nossas guerras, prolongou-se por 30 anos, em complexas vicissitudes no Ultramar e períodos de paz relativa. Será que, em face da instabilidade que se vive, apenas se escoaram 16 dos anos de uma guerra mais longa que nos foi imposta?

  66. Na medida em que reside nos Estados Unidos a maior colónia cabo-verdeana, e em face da posição do Arquipélago, trata-se mesmo de manobra atrevida… A menos que o Arquipélago dos Açores tenha sido destinado a revelar-se como objectivo de compensação… Haverá efectivamente um Tordesilhas agora por zonas?

  67. Um motivo de orgulho dos cabo-verdeanos é que «ali sempre tinha sido Portugal». Como, na Terceira, nos Açores, também na Ilha do Fogo nunca a bandeira portuguesa havia sido arreada, mesmo no tempo dos Filipes.

  68. Como previsível, em consequência, o robustecimento estratégico de toda a África meridional, do ponto de vista do Ocidente.

  69. Em Nov. de 74, a um ano da «independência», quando dos vergonhosos acontecimentos de Cabinda (sequestro do Governador, e Comandante Militar e de seus oficiais por «tropa portuguesa» bandeada com forças do MPLA) já, em Angola: oficialmente se declarava que «estavam em curso as diligências para a transferência do poder ao MPLA»…

  70. Os Lusíadas, IV, 58.