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ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
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Silvino Silvério Marques: O esforço humano da guerra era suportável pela Nação

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Neste artigo, publicado no Semanário de 18 de Abril de 1984 (via PortaDaLoja, onde podem ver-se as digitalizações do jornal, por gentileza do José), o General Silvino Silvério Marques, Comendador da Ordem Militar de S. Bento de Avis; Governador de Cabo Verde de 1958 a 1962; e Governador de Angola de 1962 a 1966 e posteriormente de Maio a Julho de 1974 — portanto em pleno processo de “descolonização” - deixa, à distância de dez anos, a sua visão sobre o esforço que comportava para Portugal, do ponto de vista humano, a defesa do Ultramar, e a sua opinião de que esse esforço era suportável, fundamentada com números e estatísticas interessantes e raramente publicadas. Aqui ficam, se já não “a bem da Nação”, pelo menos a bem da Verdade…

OPUS CITATUM
O esforço humano da guerra era suportável pela NaçãoSilvino Silvério MarquesSemanário, 18 de Abril de 1984

Uma tarde, no seu gabinete de 1.º ministro, Pinheiro de Azevedo desabafou comigo, frontal e corajoso: que o 25 de Abril tivera lugar na pior altura possível; que, mercê da sua posição conhecia em que medida o país se encontrava, na altura, em franco progresso; que se ele e os seus companheiros o tivessem sabido oportunamente, a «revolução» teria sido adiada, ou não se teria feito.

A guerra em África custara 97 milhões de contos2. As despesas com os três ramos das Forças Armadas imputáveis à guerra tinham-se cifrado em 13,3% das despesas públicas de todo o país (Europa e todo o Ultramar). Os custos totais das Forças Armadas em todo o país tinham atingido, em relação às despesas públicas, um máximo de 34%, em 1968, e haviam descido para 23% em 1973. A comparticipação de Portugal europeu, em relação ao seu orçamento de despesa que chegara a ser de 46%, em 1969, decrescera para 29%, em 1973. Estas despesas não se haviam dissipado apenas em consumo. Pelo contrário, tinham dado lugar a um importante investimento no Portugal europeu e, muito especialmente, nas Províncias em guerra. E tinham proporcionado valiosa promoção para os cerca de 800 mil homens mobilizados e para grande parte da população do Ultramar.

O desabafo de Pinheiro de Azevedo que já revelava angústia correspondia à evolução do PNB que havia crescido, no Portugal europeu, 5,5% de 1970 para 1971, 8,7% de 1971 para 1972, 11,4% de 1972 para 1973, e em Angola e Moçambique, em média, anualmente, entre 1963 a 1973, respectivamente, 6,6% e 8%… Chegará a Abril de 1974 com um volume de reservas constituídas, independentemente de divisas várias, por 889 toneladas de ouro fino1 o que nos colocava em posição de segurança monetária invejável. Os encargos com a dívida pública, em 1973, no Portugal europeu, limitavam-se a 6,4% do total da despesa, em endividamento essencialmente interno (em 1984, subiram a 32,8%, em endividamento essencialmente externo) e as despesas com as Forças Armadas a 29% das mesmas despesas como se referiu (8,3% em 1974)… A guerra, em despesa, passou, assim, a ser em 1984, a do endividamento…

Pouco antes de 25 de Abril fui procurado por um enviado do MPLA. Contou a situação desesperada sofrida por aquele movimento, pediu que levasse aos responsáveis a proposta de aliança do que ficara do MPLA às F.A. nacionais para o combate ao inimigo restante. O «golpe» surgido entretanto, tudo ultrapassou… Mas que a guerra em Angola estava vencida, social, económica, política e militarmente é um dado assente. O último Cte-Chefe, gen. Luz Cunha, confirmava-o assim: «A situação militar no 1.º trimestre de 1974 era-nos pois francamente favorável e, a menos que ocorresse qualquer circunstância extraordinária e imprevisível, não apresentava para nós motivos essenciais de preocupação… A situação geral de Angola apresentava-se tão pujante que permitiria que pudessem ter realização os sonhos mais audaciosos que sobre ela se construíssem».

A evolução nos teatros de guerra

Isto era muito importante para o prosseguimento das operações a conduzir em Moçambique e na Guiné. Desde o início das operações em cada uma das Províncias, tinham combatido cerca de 142.000 homens na Guiné, 403.000 em Angola e 252.000 em Moçambique. Do esforço feito, Angola tinha, como resultado apresentado, beneficiado de maior parcela. As baixas, em mortes em combate, reflectiam esse facto e haviam passado,2 em Angola, de um máximo de 1,39 por mil do efectivo, em 1961, apenas para 0,64 por mil, em 1973, enquanto haviam desaparecido na Guiné de um máximo de 6,16 por mil, em 1964, por 3,64 por mil, em 1973, e, em Moçambique, de um máximo de 3,18 por mil, em 1966 para 2,27 por mil, em 1973. No Vietname, para as Forças Armadas U.S. a média anual de 1964 a 1972 foi de 14,7 por mil, e o valor máximo, de 23,5 por mil em 1968. A situação de Angola consentia pois o necessário incremento de esforço nos outros teatros de operações, sem sacrifícios suplementares.

Embora séria, a situação na Guiné podia ser retratada da seguinte forma, pelo último Cte-Chefe e Governador, gen. Bettencourt Rodrigues2: «No campo rigoroso do concreto, nega-se frontalmente a veracidade de alguma afirmações que sobre a Guiné têm sido feitas. Nomeadamente, aponta-se como rotundamente falsas que, no 1.º trimestre de 74, dois terços do território estivesse sob domínio do PAIGC; que as tropas portuguesas estivessem entrincheiradas em algumas cidades e algumas bases; que as Forças Nacionais estivessem acantonadas na capital e em mais dois ou três pontos… Funcionavam os orgãos de governo próprio; a rede administrativa cobria todo o território; os órgãos de administração local exerciam as suas funções de gestão, estavam em curso obras de fomento nos sectores da educação, saúde, vias de comunicação, agricultura e melhoramentos rurais e urbanos; a produção agrícola satisfazia parte das necessidades da população; cobravam-se impostos; cumpria-se um orçamento».

Quanto a Moçambique, a FRELIMO atrevera-se a penetrar com pequenos, mas corajosos, grupos, espectacularmente, através de Tete, e certamente do Malawi nos distritos de Vila Perry e da Beira. Mas tudo se estava preparando para que a Armada se instalasse na albufeira de Cabora-Bassa (de 5 a 30 tem de largar) e a vigiasse, como estava fazendo, com êxito, no lago Niassa, dificultando o acesso inimigo àqueles distritos. Distritos de Vila Perry e da Beira que a FRELIMO passara a incomodar, mas já não eram, na sua ocupação e no seu equipamento, os distrito periféricos e pobres de Tete, Cabo Delgado e Niassa. Moçambique estava a sentir a primeira e grande chicotada, como acontecera anos atrás, em Angola, quando Luanda sentiu a proximidade da luta e se mobilizou para a enfrentar.

Desde o início da guerra em cada um dos Teatros de Operações, até 1 de Maio de 74, foram provocados nas F.A. Nacionais um total de 6340 mortos e de 27 919 feridos dos quais 3 835 considerados inválidos. São números extremamente penosos, mas estatisticamente diminutos, relativamente aos efectivos envolvidos e à duração da luta. Na Iª Grande Guerra, com um total de 11.400 homens em armas, em poucos meses de operações, sofremos 7.908 mortos e 14.884 incapacitados. E fazendo fé em números publicados recentemente3, na última década morreram no nosso asfalto 25.000 pessoas e só em 1983 o número de mortos e de feridos foi de 44.003. Os custos desta sangria, sem contrapartida em causa nobre e decidida, é da ordem de 25 milhões de contos por ano!…

É verdade que incorporação de efectivos em número que, em média, foi de 2,5 vezes daquilo que era normal, não se faziam sem dificuldades e sacrifícios. Sacrifícios que as pátrias por vezes exigem e que os cidadãos normais não lhe regateiam. E que servem até para estigmatizar, em sociedades sãs, os que a eles fogem. Todos os efectivos mobilizados saíram, porém, do contingente geral anual. Não foram chamados reservistas. E somente nos últimos anos surgiram dificuldades com o Quadro Permanente, cansado e envelhecido, e com algumas especialidades médicas. O recurso à mobilização de alguns especialistas médicos fora do contingente. O aumento das responsabilidades operacionais do Quadro do Complemento e o cada vez melhor aproveitamento das potencialidades do contingente ultramarino foram soluções adoptadas e que se ajustaram à evolução da guerra.

Número de deserções baixou durante a guerra

Embora sofrendo com a guerra, o povo aderiu à defesa do Ultramar por forma impressionante: o número de indivíduos do contingente geral fugidos (compelidos e refractários) à incorporação que antes da guerra, entre 1958 e 1960, era da ordem dos 2,8% dos incorporados, baixou para 2,1% durante a guerra, entre 1961 e 1973, subiu para 3,3% a seguir ao 25 de Abril, entre 1974 e 1977, e vai em 4,8%, sem objectores de consciência, entre 1978 e 1983, e me 12,4% com objectores de consciência. Estes atingiram, em 1983, 32,5% dos incorporados!… O número de desertores nos três Teatros de Operações foi da ordem dos 180, numa permilagem de 0,13, o que se compara com a das Forças Armadas U.S. no Vietname, que foi de 23,4. Aquele número mede muito significativamente a adesão das populações ultramarinas, adesão de resto ainda confirmada pela simpatia e saudade que se deixou e hoje constantemente se revela entre aquelas populações e até de Estados vizinhos. É que a guerra não foi racista, não foi contra as populações e estas não estiveram efectivamente com o «inimigo». Medite-se na situação actual de Angola e de Moçambique e conclua-se a atitude de generalizada lealdade e cooperação das populações na luta travada entre 1961 e 1973. Onde estava a «insurreição», invocada por magistrados em processos importante?… Quando políticos sem farda entenderam justificar o erro e o crime da denominada «descolonização» (mesmo em Cabo Verde, S. Tomé e Timor onde a paz era absoluta) apregoando que a «guerra estava perdida» ou quando entenderam explicar comportamentos de políticos fardados com o «complexo da derrota» que longe estariam, coitados, de que, passados poucos anos, os derrotados fossem festejados e até solicitados pelos «vencedores»!… Importantes políticos acabam por, enfim, se dar conta do desastre económico e até da «perda abrupta do sentido de grandeza» e da «consequente crise de identidade nacional» resultantes da chamada «descolonização». Por onde ficou a euforia de a comparar à epopeia dos descobrimentos, como anos atrás despudoradamente se fez?… Atrasados, e sem efeitos prácticos, revelam-se os primeiros rebates de certas consciências…

Verificado que o esforço humano sofrido pela guerra era suportável pela Nação, que a adesão das populações à defesa do Ultramar, na Europa e em África, era exemplar, que o país progredira espectacularmente, apesar da luta, somente imperdoável e leviano erro teria baseado o 25 de Abril militar conduzido por uma geração de oficiais jovens, de baixa hierarquia, com o patrocínio de poucos generais.

Trata-se de erro que é preciso aprofundar nas suas misteriosas causas…


  1. Algum deste ouro tinha a seguinte origem: os trabalhadores moçambicanos das minas de África do Sul recebiam 40% dos seus salários na África do Sul e 60% na sua terra de origem, no regresso, com o que se evitava que regressassem com o salário totalmente consumido. Os 60% dos salários podiam ser convertidos em ouro. Quando o Governo decidia essa conversão, esse ouro era pago a Moçambique, ao preço internacional, em escudos, uma das divisas mais seguras de então. Notícias diferentes que têm aparecido são incorrectas e desinformadoras.

  2. J. da Cruz , Kaúlza de Arriaga, Bettencourt Rodrigues e S. Silvério Marques, «África — a vitória traída», Intervenção, Lisboa, 1971

  3. F. Castro e Casimiro Fernandes, «Morte na Estrada custa 25 milhões», Diário de Notícias, 19.Fev.84, pág. 16.

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