ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

Salazar, Holden Roberto e Humberto Delgado

aos

A propósito de Humberto Delgado, na Porta da Loja e na imprensa, o General Silvino Silvério Marques acerca de Salazar e os assassinatos…

Sobre o General Humberto Delgado e o meio em que se movimentava na última fase da sua vida, tem interesse o livro «O Bando de Argel» de Patrícia McGowan Pinheiro, publicado em 1979; e depois em segunda edição em 1998 com o título «Misérias do Exílio — Os últimos meses de Humberto Delgado» — disponível em linha.

OPUS CITATUM
Salazar, o Ultramar e o 25 de AbrilSilvino Silvério MarquesNova Arrancada, 2001págs. 43 – 46

Vi e ouvi, há dias, uma gravação que pessoa de família, a meu pedido, me havia preparado, da “Grande Reportagem”, transmitida na S.I.C., relativa aos trágicos acontecimentos de Angola, iniciados com o 15 de Março de 1961.

É impressionante o que ali foi relatado pela boca de autores confessos de crimes cruéis.

O à-vontade, a boçalidade, a inconsciência, a irresponsabilidade com que dois africanos da F.N.L.A., contam a forma como mataram, e se matava, à catanada, ou à cacetada, adultos, ou por projecção contra paredes, ou contra o chão, crianças e bebés toca a raia do animalesco. Na narração não faltou a puritana invocação de versículos bíblicos que talvez indiciassem uma origem promotora de tais acções…

Acima destas revelações que os próprios produzem com certo ar heróico, por vezes sublinhado por um sorriso perverso, orientando e enquadrando tais acções, um “Plano Estratégico” mandado elaborar por Holden Roberto a um perito, creio que australiano (qual “Carlos” especializado em massacres de populações), que já havia sido autor do “Plano Estratégico” aplicado na subversão da Argélia. Tácticas pormenorizadas teriam sido difundidas, tais como o recurso a cozinheiros e outros empregados domésticos que, na falta de outras armas, foram ensinados a envenenar o patrão ou a degolá-lo com catana quando inclinasse a cabeça para se servir do açúcar que lhe fosse oferecido… Se a vítima fosse reconhecida como sempre tendo sido bondosa para o algoz, a catana poderia ser substituída pelo cacete!… Se assim não foi pormenorizadamente planeado, assim foi sendo executado segundo o que foi contado pelos próprios autores… E entre 5 a 6 mil pessoas, europeus e africanos1, foram então chacinadas.

Certamente para atenuar, ou mesmo justificar o quadro de horror que é descrito, e que fez deflagrar a tragédia que Angola ainda vive, dois europeus que referem, vagamente, como acções de outros europeus, o trabalho compelido, os salários delapidados no comércio de dívida, o chicote utilizado para castigar tarefas não cumpridas… Não foram ouvidos autores ou responsáveis por tais práticas aberrantes utilizadas em África, e não só, as quais infelizmente, também entre nós tiveram aderentes. Tal como as mesmas são referidas, deixa-se os espectadores pensar terem sido generalizadamente usadas e aceites. Pena não terem sido ouvidos administrativos que de chefes de Posto a Governadores de Distrito, contemporâneos dos tempos anteriores ao 15 de Março, se encontram entre nós… Pena também a falta de uma referência ao inquérito da Organização Internacional do Trabalho às condições trabalho em Angola e as respectivas conclusões. Pena, ainda, não ter sido comentado que dos milhares de pessoas chacinados no 15 de Março, alguns milhares foram de trabalhadores bailundos, os tais que seriam vítimas do trabalho compelido, do chicote por tarefas não cumpridas, dos salários dissipados nas lojas das dívidas…

Bailundos, chacinados pelos seus benfeitores, os homens do Congo que se teriam subvertido contra as injustiças que neles — bailundos — os “brancos” generalizadamente praticavam certamente por constituírem gente sem escrúpulos… Até é referido o vinho que era “baptizado” infracção que será desconhecida aqui…

Sem as entrevistas que poderiam ter sido feitas e sem os comentários que se referem, ficam no ar como verdades integrais, parcelas de verdades, em geral puníveis e punidas quando conhecidas e provadas a nível adequado.

Em pano de fundo, entre outras histórias por vezes muito tristes, a odisseia de um europeu, o Necas da Vista Alegre, o qual munido de uma carabina potente e de suas munições, usadas na caça ao elefante, e acompanhando, e protegendo, mais de uma dezena de familiares e vizinhos, anda fugido pelo mato, durante muitos dias, de bandos de africanos que os pretendem massacrar. Em defesa sua e dos seus companheiros foi afugentando e mantendo à distância massas de perseguidores, algumas vezes alvejadas por forma a abrir nelas clareiras de baixas. Odisseia contada com simplicidade por esse valente que acaba por ser salvo, com os companheiros, por uma patrulha de dois jeeps de militares, dos raros, nesse tempo, existentes na Província. Os numerosos que aparecem no filme espraiados no terreno, penso não serem contemporâneos do acontecimento e dão uma ideia falseada da situação…

Estas e outras histórias são separadas pela projecção da imagem da carabina ou das munições usadas pelo Necas da Vista Alegre, imagem que se procura insinuar no espírito dos espectadores como que para ir apoucando, ou mesmo denegrindo, a valentia revelada por aquele homem…

Visto o filme, e em face da brutalidade das revelações, penso que foi útil a sua transmissão, mesmo com os senões apontados. Útil, em face do desconhecimento generalizado de uma ou duas gerações de portugueses, ou de conhecimento deturpado, pela forma como foi desencadeada, a guerra de Angola pelos 60 agentes que, como foi revelado, durante meses se passearam pelo Norte, transportados em viaturas de “brancos”, dos maus “brancos”, alguns mais tarde chacinados pelos utilizadores das suas boleias…

A ponderação de que Holden Roberto é o “responsável mais visível” das horrorosas atrocidades cometidas sobre gente, em geral completamente indefesa e, muitas vezes, completamente inocente das injustiças apontadas, induz-me a revelar o seguinte importante facto do qual somente dei conhecimento, com o pedido de confidencialidade, a um jornalista que me mereceu especial consideração e que, em conversa a propósito, julguei vantajoso esclarecer.

Depois de chegar a Luanda, em 4NOV62, fui visitado durante muitos meses por um português que vivia e trabalhava no então Congo-Leo[poldville, i.e. Congo Belga, n.e.] e que me conhecia bem de Lisboa. Falava-me das coisas do Congo e dos angolanos que ali se encontravam há muito e dos que para ali tinham fugido com os acontecimentos do Norte. Durante meses e meses, insistiu comigo no sentido de ser dada autorização a um grupo de angolanos que o desejava fazer para que liquidassem Holden Roberto. Isso seria muito simples, face às relações estabelecidas por esse grupo no Congo e resolveria a insurreição…

Nos primeiros meses não dei importância à sugestão, limitando-me a dizer ao meu visitante que não pensasse nisso, pois tratava-se de métodos que nós não usávamos, que eram contra a formação dos responsáveis portugueses. Mas as visitas continuavam e eu era sempre confrontado com a insistência no pedido de autorização. Tantas vezes isto aconteceu que acabei por me interrogar se não estaria a exorbitar da minha competência ao travar uma iniciativa que, razões superiores de Estado ignoradas, e rejeitadas, por mim, poderiam acolher. E levei o problema ao ministro do Ultramar, Com. Peixoto Correia. Recebi prontamente uma resposta: o assunto tinha sido dado a conhecer ao senhor Presidente do Conselho, Dr. Salazar, que repeliu liminarmente a ideia. Está felizmente vivo um antigo governante que assistiu à espontânea indignação do Dr. Salazar, quando o assunto lhe foi apresentado.

Não posso deixar de comparar o comportamento de Holden Roberto com a atitude de Salazar. Anos mais tarde, o Gen. Humberto Delgado que somente no fim da sua carreira militar deixou de servir Salazar e o Estado Novo, foi assassinado em circunstâncias ainda sujeitas a controvérsia. Quando figuras importantes insinuam, ou acusam, a intervenção de Salazar neste crime, não posso deixar de recordar a sua indignação perante a sugestão de crime semelhante ser autorizado sobre Holden Roberto, então generalizada e profundamente odiado.

E repilo frontalmente tal acusação.


  1. Números citados por Franco Nogueira em Salazar, vol. V, pág. 218.

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