ULTRAMAR
ASPECTOS DA POLÍTICA ULTRAMARINA PORTUGUESA
Cristo

Depoimentos - Abílio Pires

aos

Segundo depoimento recolhido por Manuel Marques José, desta vez a Abílio Augusto Pires.

Para além do depoimento propriamente dito, acrescentam-se algumas notas do mesmo autor também recolhidas por Manuel Marques José sobre uma notícia no jornal T&Q, acerca do “Bando de Argel” e sobre Timor.

OPUS CITATUM
Depoimento a Manuel Marques JoséAbílio Augusto Pires1999

1. Depoimento de Abílio Augusto Pires

Introdução

Aceitei colaborar nesta página e nem sei explicar porquê. Não tem grande importância: sempre pensei que os porquês são muito importantes nas ciências exactas mas eu não vou fazer ciência.

Não aspiro ser vedeta. Fui sempre contra os vedetismos e só admirei a Rosa Mota até ao momento em que a soube nos estados-gerais do P.S. Não fiquei desiludido: ouvi dizer que tinha os pés chatos como o Presidente Sampaio e é certo e sabido que quem tem algo de chato acaba por ir parar ao P.S.

Inevitavelmente.

Não sei escrever. Nunca passei de “polícia da Régua” e um “polícia da Régua” não é obrigado a saber escrever bem. Não precisa sequer de saber escrever “corcel”. Basta que saiba escrever “cavalo” e se pronunciar “cabalo”, não vem daí mal nenhum. A Rosa Mota pronuncia assim e foi a Tóquio e aos estados-gerais do P.S.

Não quero o Prémio Nobel da Literatura. Como havia de querê-lo, eu que nunca tive paciência para ler o grande Saramago?…

Não aspiro sequer a uma pena de ouro. Pena de ouro “só há um, Raul Rêgo e mais nenhum”.

Eu, posto isto, vamos ao que me é pedido.

I. e II. Biografia

É tão simples, tão banal que mais valeria dizer que não tenho.

Nasci numa pequeníssima aldeia a escassos 3 quilómetros de Bragança. Não fora o IP4 a estabelecer uma fronteira e a cidade teria devorado já a pacatez e o silêncio em que vivo.

Filho de lavradores modestos (Trás-os-Montes não é o Alentejo) fiz em Bragança o ensino secundário.

No 7.º ano, então último do Liceu, obtive uma média de 16 valores o que, ao tempo, me dispensava do exame de admissão à Universidade. Era meu sonho tirar o curso de Direito. Mas em Bragança não era possível, nem mesmo no Porto. Só em Coimbra ou Lisboa poderia fazê-lo e os meus pais não dispunham de meios que o permitissem. Fiz o serviço militar obrigatório como miliciano e, no ano seguinte, concorri à PIDE, onde entrei em 7 de Janeiro de 1950.

Não perdera sonho de cursar Direito e logo que me foi possível matriculei-me, discretamente e como aluno voluntário, na velha Faculdade do Campo de Santana. Fiz o 1.º ano sem grandes problemas não obstante as naturais dificuldades de adaptação e o facto de a vida profissional me não permitir a comparência a mais do que umas dezenas de aulas. Valiam-me as “sebentas” que alguns colegas e amigos me iam facultando. E estava no 2.º ano quando a P.I.D.E. decidiu nomear-me para frequentar um curso nos Estados Unidos da América, mais precisamente na C.I.A., de que pouco mais conhecia do que a sigla. Tratou-se, no meu caso, de um curso de informação e contra-informação, “espionagem e contra-espionagem”, como eles preferiam dizer. Eram matérias do meu gosto, até porque era nisso que eu já trabalhava. Não aprendi muito. Apercebi-me, a breve trecho, de que eles não eram melhores que nós. A diferença residia nos meios disponíveis, já que os deles eram quase infinitamente maiores do que os nossos. Porque vem a talho de foice, esclarecerei que vem daí o facto de, após o 25 de Abril, eu ser acusado de “especialização em torturas na escola da C.I.A.” Dá vontade de rir, porque tais acusações resultam tão somente da incompetência, direi mesmo, da ignorância de certos analistas. Desde logo porque a C.I.A., como a própria sigla indica, é uma Agência de Informação. E embora se trate de uma Organização poderosíssima, cujos tentáculos se estendem ao mundo inteiro, a verdade é que não tem presos, não faz interrogatórios nem instrução de processos por se tratar de matérias que são da exclusiva competência do F.B.I. E isto toda a gente sabe com excepção dos nossos “profissionais” de Comunicação Social.

Regressado a Lisboa, foi-me logo comunicado que não poderia continuar os meus estudos de Direito, uma vez que se havia gasto muito dinheiro com a minha especialização nos E.U.A. Nem sequer era verdade porque os americanos haviam suportado todas as despesas com excepção das ajudas de custo — uns 40 e tal contos — que constituíram o meu primeiro depósito bancário e serviram depois para pagar o meu primeiro carro. Como já era casado e tinha responsabilidades de família, desisti do curso e continuei a trabalhar na Informação, agora de uma forma um pouco mais sofisticada dado que os americanos haviam oferecido algum material, embora pouco e um tanto “demodé”.

Nos últimos anos da década de 50, fui colocado, que não transferido, na Direcção dos Serviços de Investigação. A ideia inicial teria sido a de servir de elemento de ligação entre os dois serviços o que, do meu ponto de vista, se justificava plenamente. E justificava-se porque se era verdade que a Informação fornecia à Investigação os elementos que permitiam iniciar processos, não o era menos que esta última acabava por recolher pormenores que a Informação não poderia conhecer. Eram serviços complementares que como tal deveriam funcionar. Aconteceu que, tempos depois, foram detidos alguns intelectuais sobejamente conhecidos — médicos, advogados, economistas, arquitectos, etc. e fui incumbido de interrogá-los e instruir os processos respectivos. Creio que não me saí mal de todo e a verdade é que, terminada essa tarefa, eu tive a oportunidade de penetrar na rede do Partido Comunista Português e desmantelar os sectores intelectuais de Lisboa, Porto, Coimbra e Aveiro. Daí o epíteto de “intelectual” com que ainda hoje vou sendo mimoseado pela própria comunicação social. O que é, de todo injusto, pois não faltavam à P.I.D.E. funcionários capazes de fazer o que eu fiz, porventura melhor do que eu.

De qualquer forma, eu disse em entrevista a um semanário que, em termos económicos, terá sido esse um dos maiores golpes que o partido comunista sofreu. E mantenho essa opinião porque, enquanto o “militante” rural do Alentejo pagava para o partido uma cotização mensal da ordem dos 2$50 ou 5$00, eu encontrei naqueles sectores pessoas bem lançadas na vida que pagavam cotizações mensais de 100 contos, para além de fornecerem os automóveis em que os funcionários clandestinos se faziam transportar.

Em 1965, já como inspector, regressei à Informação.

III. Funções desempenhadas

Todas, desde agente-auxiliar até Inspector-Adjunto. Direi, sem falsa modéstia, que fui o Inspector de Carreira mais novo da Organização. Percorri todos os degraus da hierarquia e, até Chefe de Brigada, sempre por concurso que englobava provas escritas e orais. A partir dessa categoria foi diferente: só fui Chefe de Brigada um ano por ter sido promovido a Subinspector por distinção. Também só fui Subinspector um ano por ter sido nomeado Inspector. Fui Inspector três anos porque era isso o que a lei exigia para se poder ocupar o lugar de Inspector-Adjunto.

IV. Factos que recorda, relevantes, passados consigo ou com outros

Atingi a categoria de Inspector em 1965 e regressei à Direcção dos Serviços de Informação a que sempre pertencera. Passei de imediato a dirigir o C.I.2 (Centro de Informação n.º 2) sem dúvida um dos mais árduos da Organização. Bastará referir que centralizava toda a informação relativa ao Ultramar e Estrangeiro, abrangia o gabinete N.A.T.O., o Conselho de Segurança Interna que funcionava no Ministério da Defesa Nacional, em cujas reuniões passei a participar como representante do Ministério do Interior e tinha ainda a meu cargo os contactos com Polícias estrangeiras. Como Inspector-Adjunto mantive as mesmas funções até 25 de Abril de 1974. Foram nove anos de uma actividade intensa e intensamente vividos. Sustentávamos uma guerra em três frentes. No estrangeiro, as actividades contra a segurança do Estado Português não abrandavam, antes pelo contrário. Vi-me, assim, obrigado a viajar constantemente pela Europa e por África num dinamismo constante e por tal forma desgastante que ainda hoje vou sofrendo as consequências. E quando chegava a Lisboa, encontrava sobre a secretária pilhas enormes de documentos que urgia ler e despachar, no que consumia dias inteiros e parte das noites. Mesmo assim, consegui montar uma boa rede de informação na Europa e também em África apesar de, aí, ela estar a cargo das Delegações Provinciais.

Não gostaria de falar de factos relevantes meus ou de outros. Dos meus (se algum tive) porque não posso ser juiz em causa própria. De outros (e conheci muitos!) por razões éticas e de respeito para com os seus autores. Mas para não fugir à questão, falaria “en passant” de algumas coisas que eu próprio fiz e não considero relevantes porque consciente de que qualquer colega, no meu lugar, teria feito o mesmo ou, porventura, melhor.

A minha rede de informação na Europa funcionava bem, em especial na França, Bélgica e Suíça. Tão bem que permitia controlar, quase ao pormenor, os passos de terroristas e assaltantes que por lá campeavam. Referir-me-ei, a título de exemplo, a Liga de Unidade Antifascista Revolucionária (L.U.A.R.), cujo chefe operacional era Hermínio da Palma Inácio. Essa organização havia assaltado a Agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, o que lhe rendera um montante de 28.000 contos. Foi sem dúvida um “golpe” inédito em Portugal, que só foi possível por se tratar de uma “associação de malfeitores” de crime comum, já que a L.U.A.R. só nasceu como organização depois do assalto e com o único objectivo de inviabilizar as respectivas extradições. E permitir-me-ia lembrar que 28.000 contos naquela época equivaleriam a muitas centenas de milhar hoje. De qualquer forma, consegui recuperar 22.000 contos, dos quais cerca de metade em território nacional e o restante (um pouco mais de metade) numa quinta situada nos arredores de Paris. A minha rede de informação permitiu-me ainda deter o Palma Inácio e o seu “exército” quando entraram de novo em Portugal e responder de forma que também terá sido inédita: — Fui eu quem comprou e pagou a serra com que o Palma Inácio fugiu do calabouço da P.I.D.E., no Porto. Fi-lo porque tinha a certeza de que o apanharia de novo logo que voltasse a Portugal e, principalmente, porque “queria limpar” um dos meus informadores, cuja vida corria perigo. Saí-me bem. Tão bem que quando, tempos depois, reentrou em Portugal, com o seu novo “exército”, foi tudo detido na hora H, ou seja, no preciso momento em que se preparavam para assaltar nova agência bancária.

Em África, recrutei um Oficial de Polícia da Tanzânia que, por ser piloto-aviador e um bom perito em fotografia aérea, passou a fornecer-me as fotografias de bases da FRELIMO, situadas para lá das fronteiras de Moçambique.

Ficar-me-ia por estes dois exemplos, que não pretendem passar disso mesmo. Mas há um outro aspecto da minha actividade que não desejaria passar em branco porque já foi alvo de especulações por parte de certa imprensa: num país em guerra, corre-se sempre o risco de ter que suportar as “ofertas” de pseudo-informadores que mais não pretendem do que extorquir dinheiro. Portugal não poderia fugir à regra e os pseudo-informadores saltavam de Embaixada em Embaixada em tentativas constantes de extorsão. Os nossos Embaixadores defendiam-se e, por norma, despachavam esses assuntos para para os adidos militares que, por sua vez, se defendiam também, oficiando ou telefonando à P.I.D.E. a pedir um “técnico” que avaliasse a “mercadoria”. Por força das circunstâncias, o “técnico” era eu. Lembro-me de variadíssimos casos mas o mais curioso ocorreu na Embaixada de Portugal em Haia. O Senhor embaixador tratou o caso pessoalmente com o Director-geral da P.I.D.E., Major Silva Pais. E lá fui eu, no primeiro avião, para a Holanda. Em Haia, aguardava-me o Senhor Embaixador que me narrou o caso e disse que jantaríamos os três, ele, eu e o informador em determinado local. Perguntei-lhe se havia dito ao informador que ia alguém de Lisboa para o ouvir e perante a sua resposta afirmativa disse-lhe: “Tenho muito gosto em jantar consigo mas seremos só os dois porque o homem não aparece”. Não acreditou e garantiu-me que o homem apareceria pois tinha a certeza de que eram verdadeiras muitas das suas informações. A verdade é que não compareceu. Intrigado, o Senhor Embaixador perguntou-me como tinha eu “adivinhado” a não comparência, ao que respondi: “Não só conheço a história como sei quem lha contou”. Continuou a não acreditar pelo que lhe propus o seguinte: “Vamos à Embaixada e autorize-me a telefonar para Lisboa. Amanhã, à chegada do avião de Lisboa eu mostro-lhe a fotografia do seu informador”. Assim fizemos. Liguei para o C.I.2 e disse ao Chefe da Secretaria: “Enderece um envelope ao Senhor Embaixador de Portugal em Haia. Introduza nesse envelope a fotografia de F… e mande entregar ao Comandante do avião da TAP.” Na manhã seguinte lá estávamos, no Aeroporto. O Senhor Embaixador recebeu o envelope, abriu-o e exclamou de imediato: «Mas isto é incrível!» E repetiu a exclamação. Pela minha parte limitei-me a dizer-lhe com bonomia: «Não é nada incrível. Se lhe lerem uma página de Eça e outra de Camilo, V. Excia. sabe qual é a de um e qual a do outro…» «Com certeza», respondeu. «Foi só isso o que eu fiz. V. Excia. leu-me a página e disse-lhe quem é o autor.» E despedimo-nos. Na verdade, era a terceira vez que o nosso homem tentava vender aquela história, embora com variantes. Eu só o vira uma vez, em Paris, mas aproveitara para o fotografar muito discretamente.

Não cito o nome do Senhor Embaixador que julgo vivo e são. Rirá com certeza se ler esta página.

V. Opinião sobre o regime anterior

Que poderia eu dizer sobre o regime anterior a não ser que concordei em absoluto com ele e por isso o servi o melhor que pude e soube? Salazarista convicto, jamais renunciarei às minhas convicções. Para mim Salazar confundiu-se com o regime e este com a Pátria e creio bem que nem o Frei Melícias e o Brigadeiro D. Januário juntos conseguiriam levar-me a mudar de ideias. E, se me esgotassem os argumentos, dir-lhes-ia que sou católico, apostólico, romano e quero comparecer no Juízo Final, no Vale de Josafá, como homem de direita que sempre fui. E aí, di-lo a sagrada escritura, os bons vão para a direita e os réprobos para a esquerda.

Nos meus verdes anos, fiz-me salazarista já nem sei bem porquê. Talvez porque Salazar foi um provinciano como eu e como eu deveu a “Deus a graça de ser pobre”. Era incorruptível, pelo que também deveu a Deus a graça de morrer pobre. Como me acontecerá. Foi, sem sombra de dúvida, o maior estadista do seu século: herdou um país arruinado por duas décadas de desgovernação vergonhosa, desprestigiado, sem ordem, sem dinheiro e sem crédito. Em vez de acusar os governos anteriores, como hoje se tornou hábito, remeteu-se ao silêncio do seu gabinete e equilibrou as finanças, restabeleceu a ordem pública e reconquistou um prestígio internacional que lhe permitiu atravessar incólume a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial. E, apesar de Yalta, conservou o Portugal de Além-mar. Não me agrada alongar-me sobre este assunto porque já o fiz mais de uma vez através da imprensa. Acresce, de resto, que já vejo e oiço, nos ecrãs de televisão, homens de extrema-esquerda confessarem compungidamente os méritos de estadista de António de Oliveira Salazar. Mas não posso esquecer-me de África e dos africanos. Não posso esquecer uma Angola que conheci próspera e feliz agora esventrada por rebentamentos de bombas e de minas, com a sua população desnutrida esfomeada que se não morre de um tiro ou de uma granada, morre por falta de alimento ou por força de doenças há muito erradicadas. Como não posso esquecer uma Guiné menos próspera sem dúvida, mas onde sempre se arranjava um punhado de arroz para matar a fome o que é impossível agora face à intervenção de tropas estrangeiras. Ou Moçambique, com larguíssimos recursos terrestres e marítimos mas que figura nas estatísticas como o país mais pobre do mundo. Está agora, ao que parece, numa paz expectante, aguardando que um grupo de Zulos se juntem porque um deles se lembrou de soprar num corno de búfalo ou que umas dúzias de Macondes desajeitados desçam do planalto às cambalhotas. Como não posso esquecer o povo martirizado de Timor, traído e abandonado pelos mesmos portugueses que choram agora lágrimas de crocodilo.

Estamos na Europa, dir-me-ão. É verdade. Estamos na Europa de mão estendida, vergonhosamente. E se não tenho nada contra a “Europa das Pátrias” o mesmo não direi de uma Europa federal ou globalizada como soe dizer-se: “A Pátria não se discute”, disse Salazar. E talvez os federalistas, os defensores da globalização desconheçam ou não se lembrem de que também Hitler queria a Europa. E queria-a amalgada e amassada por um exército comum, uma economia e um sistema monetário comuns, por uma política de estrangeiros comum. Dir-me-ão agora que os meios eram diferentes e horrorosos. Totalmente de acordo. Mas não posso deixar de responder que não foi a direita quem disse que “os fins justificam os meios”. Mas isto é assunto para economistas e políticos. Não o é seguramente para “polícias da Régua” e eu nunca passei disso. Pelo que fico por aqui.

VI. Opinião sobre o regime actual

Sobre o regime actual, creio bem que nem valerá a pena pronunciar-me, já que a minha resposta está implícita na que dei anteriormente. Acresce que foi aceite pelos portugueses bem ou mal-informados, enganados ou não, violentados ou descomprometidos.

De qualquer forma, optaram e creio que não devo, aqui e agora questionar essa opção. Já quanto ao governo a questão se me põe em termos diferentes. É verdade que também ele foi eleito por vontade dos portugueses, melhor diria, de alguns portugueses. Mas foi-o a um nível diverso porque partidário e de forma crapulosa através de falsas promessas que não foram nem serão cumpridas. E eu nunca poderia concordar com um governo crapuloso e libertino, com um governo que o não é porque dialoga ou diz dialogar mas não governa. Não sou contra o diálogo, sou contra a falta de decisão. Veja-se o que se passa nos domínios da saúde, da justiça, da educação, dos transportes, da agricultura, da segurança das pessoas e bens: — Se os médicos não estão em greve, estão os enfermeiros. Se os juízes não protestam, fá-lo o Ministério Público e de tal forma que se “quem rouba um tostão é ladrão, quem rouba um milhão é barão” mesmo que para tal se deixem ultrapassar todos os prazos até à prescrição. Se os professores não estão em greve, estão os estudantes que fecham as escolas a cadeado ou ocupam as instalações dos Conselhos Directivos. Se os pilotos não estão em greve, está o pessoal de terra. Se os maquinistas da CP não estão em greve, estão os camionistas. Se Souselas não está em greve, está a Maceira ou se ambas acalmam começa o Barreiro. Se os agricultores não protestam, fazem-no os suinicultores ou os bovinicultores. Deixei para o fim a Segurança de pessoas só para dizer que passeei sozinho ou mesmo com a mulher e o filho, vezes sem conta e sempre desarmado, por locais onde hoje a Polícia não vai. E que ninguém pense tirar dividendos desta afirmação, porque a culpa não é da Polícia. A Polícia cumpre como sempre cumpriu. Enfim, segundo o calendário chinês, estamos no ano do Coelho e pode ser que as coisas mudem. Mas não será com 8.500 polícias mais que elas mudarão. Mudariam sim se dignificassem os que têm, se os nobilitassem, se lhes restituíssem a autoridade e o respeito que lhes são devidos e de que os despojaram, se os dotassem de meios que os novos tempos exigem, se deixassem de encarcerar polícias e soltar criminosos. E o que é dramático no meio desta barafunda em que vivemos é que se fala constantemente na criação de milícias populares. Eu confesso que estremeço, creio que chego a corar como se ainda tivesse algo a ver com isso. Se pudesse dar um conselho ao Engenheiro Guterres, seria este: — Cuide-se, estejamos ou não no ano do Coelho. Não se fie em sondagens. Um ano antes do 25 de Abril, eu vi o Professor Marcelo Caetano em ombros pelas ruas de Tomar. E “vi claramente visto” porque andava com ele.

VII. O que foi o 25 de Abril de 1974 (causas, intervenientes, etc.)

Não consigo explicar a génese do 25 de Abril de 1974 sem falar de Salazar, até porque, com ele, nada teria acontecido. Tentarei explicar-me.

A partir de 1968, a oposição ao regime vigente em Portugal foi-se radicalizando de forma gradual mas sempre progressiva. Para mim e creio que para a maioria dos Portugueses que pensavam como eu, as questões que se punham eram fundamentalmente as seguintes:

  • Seria o País capaz de adaptar-se sem sobressaltos a uma realidade nova, após 40 anos de governação de um homem com a sagacidade, a tenacidade, a coragem e o génio de Salazar?

  • A “evolução na continuidade”, desde logo anunciada pelo novo Chefe do Governo, poderia ser exequível e tranquila num país de tão parcos recursos e que, para mais, suportava pràticamente só, uma guerra em três frentes?

  • Como reagiria a Igreja Católica, onde já eram visíveis sinais de degradação como o atestavam, designadamente, os casos do Bispo do Porto e vários párocos como os de Belém, de Alhos Vedros e da Lixa para além de outros, em Angola e sobretudo em Moçambique?

  • Qual a política do Vaticano que, tendo abençoado a nossa ajuda na “dilatação da fé” ao construir o Império, parecia já então evidente que se manifestava contra esse mesmo império?

  • Até quando os dois imperialismos mundiais — Estados Unidos e Rússia — continuariam a seguir políticas paralelas contra aquilo que denominavam por “imperialismo português” sem outro fim em vista que não fosse a exploração das riquezas existentes no subsolo, em especial no de Angola?

Tudo isto era deveras preocupante. A verdade, porém, é que também a oposição dita democrática, em Portugal, estava enfraquecida face ao desaparecimento de algumas figuras de proa e ao envelhecimento de outras. E, por outro lado, não se afigurava que a A.S.P., nascida na Suíça creio que em 1964, viesse nos próximos anos a conquistar um mínimo de credibilidade interna e externa. Acontecia ainda que a própria guerra no Ultramar contribuía para dividir as oposições já que alguns dos mais altos expoentes defendiam a permanência de Portugal em África. Afigurava-se, assim, que seria possível uma transição mais ou menos calma mas que daria o tempo suficiente para a resolução dos problemas africanos. Talvez bastasse confinar o partido comunista português aos seus limites tradicionais, o que nem seria difícil dada a experiência da P.I.D.E. nessa matéria.

Não se desconheciam outros problemas como o dos oficiais milicianos a que cada vez mais se recorria e que, salvo honrosíssimas excepções, saíam das Universidades mais versados em marxismo do que em qualquer outra matéria, e iam para as unidades semear essas ideias entre os do Quadro Permanente. Por outro lado, as guerras prolongadas geram sempre a lassidão que passou a ser facilmente detectável entre Oficiais do Quadro Permanente com várias comissões no Ultramar. Aí residiu a génese do chamado “movimento dos capitães” que já uma vez defini como “movimento meramente corporativo”, uma espécie de guerrilha de “mamelucos” contra “janízaros” em que cada grupo defendia os seus interesses e também o seu “sultão”. O livro de António Spínola “Portugal e o Futuro” viria exaltar as hostes e descer enormemente o moral das nossas tropas. E o “movimento dos capitães” constituído por homens na sua maioria politicamente ingénuos, deixou-se envolver pela dupla constituída pelo P.S. de Mário Soares e o P.C.P. de Álvaro Cunhal que se haviam aliado cerca de três anos antes, em Paris. Uma aliança que mais pròpriamente se diria entre a C.I.A. e o K.G.B. E, perante tudo isto, o que fez o governo? — Direi que rigorosamente NADA. Posso garantir que o Primeiro-Ministro esteve sempre perfeitamente informado. Só que não enfrentou nem deixou enfrentar a situação. E manteve essa posição até à tarde do dia 25 de Abril de 1974, recusando-se inclusivamente a sair do Quartel do Carmo quando os carros que o haviam de levar estavam estacionados junto do elevador de Santa Justa. Não correria o mínimo risco. Um dos Inspectores que o acompanhariam entrou calmamente no Quartel e responsabilizou-se pela sua saída com total segurança. Limitou-se a um breve agradecimento e dizer-lhe que já combinara tudo com o general Spínola e aguardava que chegasse para lhe entregar o poder. Não sairia, portanto, dali.

Termino este capítulo como o comecei: — Com Salazar o 25 de Abril não teria acontecido.

VIII. O que pensa do futuro de Portugal

Não posso pronunciar-me sobre o Futuro de Portugal. Não sou profeta nem analista político. Fui polícia e nada mais do que isso. Não estou optimista. O futuro do próprio mundo civilizado é mais do que nunca uma incógnita. Os fundamentalismos tomam aspectos assustadores. Quanto a nós, portugueses, viveremos certamente mais um ano de mão estendida à caridade dos ricos até que estes se cansem de suportar-nos. Depois, receio seriamente o desaparecimento de Portugal como Nação independente e soberana. Mas ainda pode acontecer um milagre que bem poderia ser o aparecimento de um novo Salazar.


2. Comentário a uma notícia

[Manuel Marques José:] (Isto é, mais ou menos a transcrição — resumida — de uma notícia de jornal T&Q de 20 e poucos de Abril de 1997, se não me engano. Gostaria de lhe pedir se me podia dizer qualquer coisa sobre estes acontecimentos…)

Transcrição da notícia

«Uns dias antes do 25 de Abril, o subdirector-geral da PIDE/DGS, Agostinho Barbieri Cardoso, informou o inspector Abílio Augusto Pires que, ao contrário do que era costume e apesar de ter sido ele a preparar os dossiers. não o acompanharia a Bruxelas a uma das reuniões de rotina da NATO. No seu lugar iria José Manuel Cunha Paço (o jornal transcreve com um erro, é PASSO e não PAÇO), outro dos quadros policiais que habitualmente tratava dos assuntos relacionados com o chamado “gabinete NATO”. “Prefiro que você fique por cá, cheira-me que eles estão quase a sair da toca”, terá justificado Barbieri Cardoso. Segundo Abílio Pires, a polícia dispunha de informações “muito completas” sobre o movimento dos capitães: Não sabíamos o dia em que eles viriam para a rua…"

Ao fim da tarde de 24 de Abril, a visita de um capitão que traziam debaixo d’olho ao Centro de Instrução de Artilharia de Costa (CIAC), em Cascais, foi a “peça” que a PIDE/DGS necessitava para completar o puzzle. Ainda para mais, quando perceberam que aquele oficial tinha ido à Cidadela de Cascais recolher rádio-transmissores, instrumentos essenciais na mais que previsível movimentação militar… “É amanhã!”, exclamou-se na Rua António Maria Cardoso, sede da polícia política.

Dadas as excelentes relações entre o coronel Viana de Lemos, secretário de Estado do Exército, e o inspector Álvaro Pereira de Carvalho foi decidido que este último o contactaria, alertando-o para a iminência da tentativa de golpe e para a necessidade de serem tomadas medidas para evitar o êxito dos militares insurrectos. O encontro entre ambos deu-se no restaurante Gambrinus, em Lisboa, mas o governante não pareceu lá muito preocupado com o alerta.

“Deixe-os vir, que o meu cunhado dá-lhes um arraial de porrada que eles não sabem de que terra são”, contrapunha o Viana de Lemos, aparentemente despreocupado e referindo-se ao coronel Romeiras que, horas mais tarde, na Rua do Arsenal veria as suas próprias tropas virarem as costas.

Na noite de 24 para 25 de Abril, o ambiente Rua António Maria Cardoso não era dos melhores. A iminência da saída para a rua das tropa rebeldes e um certo sentimento de impotência que se vivia contribuíam para isso.»

Comentário de Abílio Augusto Pires

Devo dizer que não me agrada abordar com grande minúcia este assunto. Tenho que falar de Coelho Dias e a minha ética não me permite que o faça com “à vontade” visto que já faleceu e não pode defender-se.

A notícia está mais ou menos correcta. É verdade que estive indigitado para acompanhar Barbieri Cardoso à reunião da N.A.T.O. e preparei os “dossiers”.

Também é verdade que fui substituído nos termos e pelas razões aduzidas. Foi uma decisão que acatei disciplinadamente e até de bom grado. Para mim era mais uma prova da enorme confiança que Barbieri Cardoso depositava em mim. Eu estivera, de resto, na base do aborto do 16 de Março pela simples razão de que estava ainda no meu gabinete quando as tropas das Caldas da Rainha saíram para Lisboa. Tomei as medidas que achei convenientes e mandei chamar o pessoal que estava em casa.

É verdade igualmente que o Director de Serviços Pereira de Carvalho jantou no Gambrinus com o Secretário de Estado do Exército, que se referiu ao Coronel Romeiras nos termos referidos pela notícia. Não foi a única vez que o fez.

O que não está certo — certamente por lapso do jornalista — é a data do mal-estar na DGS. Tentarei explicar: — Na noite de 24 para 25 de Abril o ambiente na sede da D.G.S. era de expectativa em relação à reacção de tropas leais ao governo, em especial Cavalaria 7, comandada pelo Coronel Romeiras. Expectativa e, admito-o, uma certa ansiedade por parte de alguns funcionários. Não mais do que isso. O mal-estar ocorreu na noite de 25 para 26 de Abril, já com o Spínola no poder. E isto porque o Inspector Superior do Ultramar Rogério Coelho Dias, companheiro de Spínola no Colégio Militar, começou abruptamente a dar ordens a toda a gente como se já fosse o dono de tudo. E fui eu próprio quem reagiu, tanto assim que por volta da uma da manhã do dia 26, saí da repartição e só, no meu carro, fui para casa. Não voltei à D.G.S., com receio de alguma nova reacção quiçá mais grave.

Foi por isso que na tarde de 26 de Abril me apresentei em Caxias e não na rua António Maria Cardoso.


3. Alguns elementos sobre o Bando de Argel

Natural de Águeda ou arredores, Manuel Alegre fez a sua vida académica em Coimbra. Descendente de uma classe “média-alta” fez a vida normal de estudante de Coimbra, um tanto boémia e, nesse sentido, um tanto tradicionalista. Cedo se virou para a política o que, no ambiente de Coimbra, também era tradicional. Militou na “organização local” do P.C.P. e estou à vontade para afirmá-lo porque fui eu próprio quem desmantelou essa organização. Dos seus elementos com alguma responsabilidade ficaram dois: Silva Marques, hoje deputado do P.S.D. que, embora fosse estagiário de advocacia em Aveiro, vivia já numa situação de semi-clandestinidade, e o Manuel Alegre. Mas ficaram por razões diferentes. O primeiro, Silva Marques, porque mergulhou na clandestinidade e viria depois a fixar-se na Itália, onde entrou em litígio com o “partido” do qual veio a ser expulso, após ter feito várias autocríticas que, de resto, conheci. Manuel Alegre também escapou mas porque estava a prestar serviço militar no R.I. 12 (Regimento de Infantaria n.º 12) situado precisamente em Coimbra e já mobilizado para Angola, como alferes miliciano. A P.I.D.E. foi sempre um pouco avessa à detenção de militares mas, neste caso, pesou mais o facto de estar mobilizado. É, pois, totalmente falsa a ideia de que desertou por ser perseguido pela P.I.D.E. que não o prendeu porque não quis fazê-lo. As razões íntimas que o levaram à deserção só ele poderia explicá-las se bem que se tornou evidente para quem alguma vez ouviu a “voz da liberdade” ao longo dos seus 12 anos de funcionamento.

E não venha dizer que não traiu. Fê-lo ao longo de 12 anos, não só pelas declarações que prestou como também pelas que obrigou a prestar. Trata-se de matéria conhecida mas que abordarei um pouco à frente.

Desertou e foi para Paris em 1962, estava a ser criada a F.P.L.N. (Frente Patriótica de Libertação Nacional) que já se decidira iria funcionar em Argel, com o beneplácito do governo argelino e toda a sua protecção. Seria dirigida por Fernando Piteira Santos que fora funcionário do Partido Comunista Português e expulso da organização uns dez (10) anos antes. Aliás, o governo argelino já autorizara também a instalação e funcionamento da rádio “Voz da Liberdade” da qual Manuel Alegre viria a ser o locutor até 25 de Abril de 1974. Assim, em meados de 1962, partiriam de Paris rumo a Argel Fernando Piteira Santos, sua companheira, Maria Stella Bicker Correia Ribeiro e Manuel Alegre. A F.P.L.N. cresceu rapidamente e tem que dizer-se que o seu principal indutor foi a rádio “Voz da Liberdade”. Tornou-se, assim, a breve trecho, num autêntico cóio de traidores, grande parte deles desertores do Exército Português e também, ex-prisioneiros que, libertados pelo inimigo, eram para ali encaminhados e lá permaneciam em cativeiro pelo menos até se disporem a revelar perante os microfones tudo o que sabiam e não só: tinham igualmente que recitar ipsis verbis o discurso que lhes punham à frente. Só depois disso é que teriam hipótese de sair da Argélia. Esta atitude, que em qualquer país civilizado consubstanciaria a figura jurídica de “cárcere privado” era praticada pela F.P.L.N. com a cumplicidade do senhor Manuel Alegre: só que no Portugal democrático ninguém fala disso. Não seria trair?

E receber os chefes dos movimentos africanos que nos combatiam, ouvir e transmitir aí os seus dislates não seria trair?

E fornecer-lhes as informações que desertores e ex-prisioneiros de guerra eram forçados a prestar não seria trair?

Bom, se isto não era trair vamos a outro aspecto: — Enviar homens — elementos da F.P.L.N. — para Cuba a fim de serem instruídos na guerrilha urbana, também não era trair? E a F.P.L.N. (não só mas também) enviou para lá alguns que foram treinados numa base cujo nome não me recordo de momento mas sei que dista 17 quilómetros de Havana e foram treinados entre outros por Alvarez del Bayo, antigo coronel do Exército espanhol que se bateu contra Franco e foi um dos homens do D.R.I.L. (Directório Revolucionário Ibérico de Libertação) que organizou o assalto ao Santa Maria. E também me lembro que esses homens (da F.P.L.N.) foram treinados no fabrico e uso de explosivos e, ainda, a fazer guerrilha urbana com armas que eles próprios tinham que fabricar. E que aprenderam, por exemplo, a fabricar morteiros partindo de um simples cano retirado de um algeroz. Isto era bem mais do que trair. E para que dúvidas não restem, cito dois nomes: Eduardo Cruzeiro que foi jornalista do “República”, está vivo e tem um “bom tacho” na RTP, e Rui Cabeçadas que é ou foi advogado. E digo “é ou foi” porque calculo que teria a minha idade, talvez um pouco mais, e não sei se é vivo ou já morreu. Chega? Não, não chega que eu tenho mais.

Sei que a vida na F.P.L.N. não era um “mar de rosas” para todos. Bem pelo contrário: as guerras entre essa organização e o P.C.P. era violentíssima. Chegou-se ao ponto de o P.C.P. ocupar a rádio pela força e a F.P.L.N. responder com um contra-golpe que consistiu em levantar os depósitos bancários do P.C.P., factos que obrigaram o governo argelino a intervir para pôr as coisas no lugar. E como nem o Dr. Pedro dos Santos Soares, membro da cúpula do P.C.P. e adrede enviado para Argel conseguiu pacificar as hostes, este partido decidiu jogar a última cartada: nem mais nem menos do que Humberto Delgado. Estava no Brasil, sofria de doença grave e foi a Praga para se tratar. Foi aí que o P.C.P. o abordou e convenceu a ir para Argel. Foi-lhe dito que tudo o que se pretendia era unir a oposição e derrubar o “regime fascista” português. Ninguém senão ele poderia liderar essa união, preparar e comandar o golpe. Convencido do seu prestígio, acreditou e foi para a Argélia. Enganou-se, até porque nunca lhe passara pela cabeça que encontraria o que na realidade encontrou. Desconhecia que o P.C.P. jamais perdoaria a “traição” de Piteira Santos, que, embora marxista e reconhecido como tal, havia falado na P.I.D.E. Mas havia outros problemas não menos graves: Humberto Delgado era um impulsivo e queria uma revolução imediata. O P.C.P., mais preparado politicamente, respondia que aprendera as lições da guerra civil de Espanha e da própria Guatemala. Era para eles evidente que “nenhuma revolução poderia triunfar sem que antes conseguisse o apoio das Forças Armadas”. Não embarcava em aventureirismos. Virou-se para a F.P.L.N. e a ela aderiu. Só que, logo que pôs o problema da revolução imediata, foi-lhe respondido que Lenine ensinava que “nenhuma revolução de massas poderia ser ganha sem que tivesse o apoio de uma parte do exército que houvesse servido o regime anterior”. Não percebera que uns e outros eram marxistas e sabiam que o comunismo não tinha a mínima hipótese de governar Portugal. O que interessava a todos era entregar a África Portuguesa à União Soviética. E isto significava para Delgado que “entre dois mundos ficara sem mundo”. Tentou, por sua vez, a última cartada: era amigo e um grande admirador de CHE GUEVARA que se transformara em mito de todos os revolucionários de todo o mundo. Pediu a sua ajuda e GUEVARA aceitou. Foi para Argel e por lá ficou uns tempos mas nada fez. Nem podia fazer: GUEVARA era agente do K.G.B. soviético. E os interesses de Moscovo estavam muitíssimo à frente de Humberto Delgado, que ficou só. Sem dinheiro, sem saúde e sem apoios ameaçou entregar-se às Autoridades Portuguesas. Foi o seu fim. Não sei como nem em que circunstâncias. Tudo o que sei — e já o disse várias vezes — é que essa história continua mal contada. Quem sabe se o senhor Manuel Alegre não poderia levantar uma pontinha do véu?…


4. Alguns elementos sobre Timor

Interrompi intempestivamente a minha modesta colaboração na feitura desta página. Fi-lo, como então referi, face aos acontecimentos dramáticos que ocorriam e ainda ocorrem em Timor. Peço aos eventuais leitores que me compreendam:

Conheci a terra e as gentes. E se a generalidade dos portugueses se sentem chocados (embora eu duvide da sinceridade de uns tantos!) se a própria comunidade internacional sente o drama indescritível de um povo, como poderia eu, seu compatriota (a minha pátria herdei-a no momento em que nasci) deixar de comover-me? Como poderia esquecer amigos que o foram, e não sei se o são, por desconhecer se pertencem ao número dos vivos? Daí, não ter podido conter a minha indignação que vai aumentando à medida que me vêm à mente traições passadas e incompetências presentes.

Falo de traições passadas. E lembro-me de um Mário Soares que escreveu ser Timor «uma ilha indonésia que pouco teve a ver com Portugal». Espectáculo digno de ver-se, há dias, em Bruxelas: o mesmo Mário Soares, de megafone em punho, a desdizer o que escreveu e se recusou posteriormente a emendar!… Como me lembro de Almeida Santos, então Ministro da Coordenação Interterritorial, entrevistado pelo Expresso a afirmar, na sua linguagem sempre cuidada, que a independência de Timor seria de um «irrealismo atroz» por razões de ordem financeira. Continuar ligado a Portugal não seria possível por tratar-se de um «transatlântico imóvel» que custa muito dinheiro; a ligação à Indonésia era inviável porque a mesma Indonésia recusava o território. Citei de cor mas garanto o sentido. É evidente que, excluídas as três hipóteses, restava a do abandono puro e simples.

Falo de incompetência presente com o mesmo à vontade. Vi, nas últimas semanas, o actual Primeiro-Ministro que, com um ar compungido mas mesmo assim professoral, afirmava, perante as câmaras de televisão, que um grupo de 100 comandos restabeleceria a ordem de imediato. Entrou uma força multinacional, com milhares de homens bem armados e equipados, há forças navais e aéreas e a ordem não está restabelecida nem estará tão cedo.

Ficou demonstrada, além da ingenuidade, a incompetência do Primeiro-Ministro que não estava minimamente informado. Estou à vontade para afirmar que estar informado implicaria conhecer os objectivos ideológicos, políticos, económicos e militares dos indonésios. Conhecer as suas técnicas e eventuais possibilidades de retaliação. Conhecer as possibilidades de destabilização do governo indonésio.

Atribuir todas as culpas às milícias armadas de nada serve: nunca houve milícias desarmadas. E nós, portugueses, temos uma longa experiência nessa mesma matéria até porque as utilizámos nas guerras que nos impuseram em África. Usaram-se também em Portugal Continental (embora fugissem a dar-lhe o nome!) nos dois anos que se seguiram ao 25 de Abril, em que, a nível de governo, se viveram situações bem parecidas com a da Indonésia actual. Senão vejamos:

Tivemos um Presidente que na sua supernal figura, tudo monoculizava, de pingalim em riste, mas nada via. Era um Habibie nas mãos de um exército anarquisante e anarquisado que ele próprio ajudava a sublevar e do qual viria a ser vítima, como Habibie o será em breve.

Tivemos o nosso Wiranto, com o pseudónimo de Costa Gomes, que seguido por Rosa Coutinho, Vasco Gonçalves e o “maralhal” do M.F.A. conseguiria facilmente o seu objectivo: entregar o Ultramar Português ao imperialismo soviético.

Tivemos em Mário Soares o nosso Alatas, só que muitíssimo menos inteligente e, diga-se em abono da verdade, também menos patriota.

Também tivemos, por esse tempo, milícias armadas pelos militares, constituídas por elementos do P.C.P., M.D.P./C.D.E., L.U.A.R., M.E.S., U.D.P. e outros mais. Quem não se lembra das mil espingardas automáticas G3 saídas do Regimento de Polícia Militar e de que tudo o que soube foi que estavam «em boas mãos»?… Eu lembro e até nem posso deixar de sorrir quando hoje ouço ou leio que «Portugal está em boas mãos»: associações de ideias…

E volto às milícias só para dizer que actuaram em conjunto com militares, assaltaram, prenderam, roubaram, interrogaram, torturaram deportaram: — De Lisboa para o Brasil, de Cabo Verde para Lisboa. Pelo menos instalaram-se em unidades militares — Polícia Militar e RALIS — onde assistiam a plenários e tinham direito a voto. Eu sei que isto é duro. Mas é verdadeiro e nem sequer é da minha autoria: copiei-o do RELATÓRIO DA COMISSÃO DE AVERIGUAÇÃO DE VIOLÊNCIAS SOBRE PRESOS SUJEITOS ÀS AUTORIDADES MILITARES, nomeada por decisão do Conselho da Revolução em 19 de Janeiro de 1976. Trata-se de uma brochura de 148 páginas, rubricadas e assinadas pelos seus autores. Foi editada pela Imprensa Nacional — Casa da Moeda e do prólogo em papel timbrado da Presidência da República e datado de «Belém, 8 de Novembro de 1976», respigo as duas pérolas que se seguem: «PORTUGAL VIU-SE NUMA SITUAÇÃO DE NÃO-DIREITO» para afirmar logo à frente que foi «O QUADRO HISTÓRICO DO TERROR».

Sei pela comunicação social que os partidos políticos acordaram não falar de Timor durante a campanha eleitoral. Não pertenço a nenhum pelo que a nenhum devo obediência. Só lamento que, sendo o P.S. um dos principais responsáveis pelo que se passa em Timor, seja ele o único que vai colhendo dividendos da situação. Vivemos num país de cegos!

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